1 Contam-se pelos dedos momentos revestidos desta densidade. A morte leva a vida a proporcionar-nos o fruir de ocasiões que de imediato percebemos raríssimas de tal modo elas nos podem confundir. A valsa da morte e da vida não fazem senão confundir-nos. Mas é preciso apanhar esse voo mesmo que saibamos como são inalcançáveis os voos da despedida, com os seus misturados fragmentos de luto, de memória, de celebração, de tributo e foi isso mesmo que ocorreu ali na Capela do Rato, anteontem, numa dignidade recolhida de lágrimas silenciosas. E da saudade da Leonor Xavier, arrancada ao coração de cada um dos que ali se haviam juntado. Um grande momento. Capaz de operar a transformação da morte, em vida. Vida celebrada.

Uma despedida que também coube na vibração lamentosa da voz de Francisco Rebelo de Andrade. Que grito de consolação triste naquela voz fora deste mundo.

2 José Tolentino de Mendonça serviu a palavra como Bach servia a música. Arrebatador e profundíssimo. Ou como Mozart e Haydn escreviam missas, roçando o transcendente. A Leonor há-de ter gostado de ouvir. Que dom. O sacerdote-poeta José Tolentino interpela-nos justamente porque percebemos que enquanto connosco partilha o seu verbo, está ao mesmo tempo a conversar com Deus através do mais verosímil dos intermediários. O único que confere inspiração, desafio e graça, apesar de se dizer que o Espírito só sopra quando quer. E sabendo nós – como bem sabemos, aliás – que o cardeal Tolentino tem o Divino Espírito Santo como “soprador” permanente e antigo, ficámos com a certeza que desta vez o Espírito quis soprar ainda mais. E a Leonor certamente que também. Fica-se perturbado com tais certezas.

3 Quando me ponho a pensar, não é fácil escolher ou eleger o melhor da Leonor. Havia alguns e eram de facto muito bons. Mas há coisas, características, qualidades, com que nascem, outras que são herdadas, outras que se aprendem. E há as circunstâncias que podem ajudar à boa caminhada, a realização pessoal, ao sucesso. Da Leonor o que retenho não é aquilo que de imediato apetece louvar. O que vou guardar é uma coisa absolutamente admirável: a sua escolha. A escolha que ela fez face à sua doença. Nunca por nunca ser vi a Leonor consentir-se passar a sua provação – e a Via Sacra que ela foi – à frente do que quer que fosse. Dos outros. Do outro. Primeiro estava o acolhimento imediato – o seu: à família, aos amigos, a quem precisava dela, a quem lhe batia a porta, aos compromissos da profissão, à escrita, aos livros. Às viagens que ela era suposta reportar, às deambulações vibrantes fora de portas para ver amigos longínquos. À celebração da vida, por outras palavras. Foi a sua escolha. A vida sempre primeiro, a solidão do sofrimento depois. A doença foi uma mochila que ela nunca entregou a ninguém. levou-a às costas, sozinha, anos e anos. Recatadamente e em silêncio. Admirável, sim.

4 Não se sai incólume de uma despedida com este grau tão denso de espiritualidade de tributo real, de emocionada saudade. Achei que tinha de contar o que acima brevemente deixei escrito. “Nada acontece até ser contado” ensinou-me uma escritora inglesa de quem gosto e passou a ser um lema: contar. Contar porque a Leonor Xavier o merece. Merece – muito! – saber como os filhos, os netos, os amigos, tantos e tão transversais, a Igreja, as letras, a cidade, quiseram despedir-se dela. E como sei que ela me está ler, escrevo. É uma obrigação sentimental minha.

E também sei que a vela deste adeus tão abençoado, vai ser a mais brilhante das velas colocada neste Natal, na família da Leonor. Deus lá sabe, há Natais assim.

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