Após a formação inicial em história, vivi a experiência do contraste entre duas universidades. Uma pública identificada com a esquerda, o ISCTE-IUL, e outra privada identificada com a direita, o Instituto de Estudos Políticos da Universidade Católica Portuguesa (IEP-UCP).
À primeira universidade devo a aprendizagem de uma parte fundamental da preparação teórica, associada a Max Weber ou Serge Moscovici, e o dever metodológico da evidência empírica, ter de realizar trabalho de campo. No entanto, a constante perversão desta vantagem alimenta a engenharia social, a arrogância académica de intervir na vida social sem antecipar a gravidade das consequências a prazo, atitude dos que venerarem a doutrinação míope dos «cientistas sociais» do último meio século tanto quanto desprezam a milenar tradição intelectual do Ocidente. Os raríssimos grandes pensadores resistentes, como Jaime Nogueira Pinto ou Rui Ramos, não são tolerados por tais castradores da diferenciação intelectual.
À segunda universidade devo o reverso. Além da milenar herança filosófica e historiográfica, a minha formação ganhou com a familiaridade a autores como Edmund Burke, Alexis de Tocqueville, Friedrich Hayek, Karl Popper, entre outros, tradição intelectual que assume especial relevância em instituições universitárias convictas do seu valor civilizacional. Tal vantagem, todavia, esfuma-se no vício livresco, a secular fuga ao saber experimental ou empírico que faz sobressair o horror académico ao cheiro dos pobres ou a sujar o fato na construção de conhecimentos.
Entre uma academia revolucionária (que atenta contra a funcionalidade da vida social) e uma academia sistémica (que a vicia no seu narcisismo estéril) sobram tradições universitárias paroquiais incapazes de compromissos entre a qualidade da abstração teórica (a fonte do rigor intelectual) e a relevância da ancoragem a desafios concretos da vida quotidiana (a fonte da originalidade do pensamento). Sem esse equilíbrio o conhecimento não é fértil nem se renova, virando grave obstáculo ao progresso dos povos.
Num país que se povoou de universidades no ciclo em que se afundou em crises endémicas, os seus académicos há muito deveriam ter questionado a natureza e validade dos conhecimentos que produzem, o dever da defesa do rigor epistemológico. Este, porém, só existe em ambientes de crítica intelectual livre, entretanto banida pelo regime político ao qual mansamente os académicos se subjugam. Essa relação fez descer um manto de interditos sobre partes politicamente inconvenientes de fenómenos fundamentais: salazarismo, racismo, «colonialismo», demografia, fascismo, socialismo, comunismo, xenofobia, extrema-direita, pobreza, estado social, ensino, imigração, entre outros. A «universidade do conhecimento» deu lugar à «universidade da doutrinação», dos mais violentos ataques ao coração da civilização ocidental.
A pretensão desbragada de um governo socialista de fazer dos académicos polícias do «discurso do ódio» do campo político adversário evidencia a reposição do espírito de cátedra que, nos séculos da inquisição, condenou Galileu. A atitude não suscitou o mais vivo repúdio, em particular dos académicos, porque o mal está profundamente enraizado deixando a descoberto uma cadeia política de comando intelectual assente em relações de dependência pessoal de tipo clientelar, determinadas por quem manda nos orçamentos de Estado, práticas que os antropólogos procuravam nas sociedades ancestrais ou comunidades marginais e hoje nem precisam de sair do seu departamento universitário.
A história é facílima de resumir. Desde a fundação do regime, em 1974, o minúsculo Partido Comunista Português (PCP) e o Partido Socialista (PS) não se fizeram rogados no assalto estratégico às universidades, cedendo ao Partido Social Democrata (PSD) e ao Centro Democrático Social-Partido Popular (CDS-PP) os restos do quinhão, e o virar do século radicalizou o fenómeno. Passou-se da fase da tomada do poder de fora para dentro para a fase da transformação, sem escrúpulos, de departamentos universitários em ninhos de partidos políticos especializados no controlo do intelecto, o mais refinado totalitarismo mental.
O Bloco de Esquerda (BE) foi o primeiro ovo político chocado por orçamentos de Estado generosos distribuídos entre o Centro de Estudos Sociais (CES), do Prof. Boaventura, da Universidade de Coimbra, a Faculdade de Ciências Sociais e Humanas (FCSH-UNL) e o ISCTE-IUL, ambos em Lisboa. Com a auréola de «ciência», o BE avançou para o assalto estratégico ao ensino básico e secundário com a «direita» do regime abúlica mesmo perante o elefante colocado na intimidade das salas de aula, a disciplina de Cidadania e Desenvolvimento que deveria ser banida dos currículos escolares.
Quando parecia que se tinha batido no fundo da violação política da dignidade das instituições do conhecimento, a Iniciativa Liberal (IL) veio provar que se pode cavar mais fundo e alastrar o veneno a departamentos de economia e finanças e a universidades privadas.
Como qualquer instituição, a universidade desespera pela imposição intransigente da sua autonomia moral, intelectual, funcional. Basta lembrar que o progresso do Ocidente contemporâneo foi fruto da separação inequívoca, no século XVIII, entre a Igreja (fé) e a Universidade (razão). Contra esse princípio civilizacional, o século XX foi impondo o efeito paradoxal da política partidária voltar a atentar, com recurso à velha violência inquisitorial, contra a autonomia da razão académica. Regressamos à casa de partida pré-contemporânea.
É esse mundo universitário prostituído pela classe política que, em uníssono corporativo, rotula o Chega de «populista», elogio a quem não se quer submeter a uma cátedra sem a mínima intenção de olhar para o interior de si mesma, regra sagrada do rigor científico e da decência intelectual. Sendo impossível o país prosperar em tais circunstâncias, cabe aos portugueses exigirem que as relações entre o poder político e a razão académica passem a rumar em sentido contrário ao imposto pelo regime de 1974.
Foi para isso que aceitei o convite para dirigir o Gabinete de Estudos do Chega, criado em setembro de 2020, para ajudar a instituir o primeiro partido político da democracia portuguesa que valoriza a liberdade de pensamento justamente por recusar, de modo ostensivo, fazer de qualquer universidade a sua barriga de aluguer doutrinária. Rotular de «populista» tal postura é ter atingido o estado rasteiro de degradação moral próprio dos que não distinguem, nem deixam distinguir, o certo do errado, o normal do anormal, a dignidade das instituições da sua humilhação, a prosperidade da miséria.
Não é por acaso que cursos universitários em «ciências sociais», incluindo «ciências da educação», com um cunho ideológico ostensivo que rompeu com as velhas preocupações de neutralidade das tradicionais humanidades (literatura, filosofia, história, entre outras) ou em «ciência política» (moldados para a militância partidária) ganharam relevância inusitada, tocados a muitos e muitos milhões de financiamentos públicos e predispondo milhares de alunos e famílias ao mesmo. Tal suborno do espírito académico corrompeu o dever moral das universidades gerarem retornos efetivos em qualidade intelectual e progresso civilizacional, assim como anestesiou a resposta social às pesadas responsabilidades das universidades na desumanização do mercado de trabalho qualificado por excesso de oferta artificial. Nem a incapacidade crescente de encontrar quem ambicione ser professor ou polícia faz o monstro académico parar para pensar.
O que André Ventura refere sobre parasitismos subsídio-dependentes, que escandalizam cínicos, vale em dose exponencial para a uma casta académica muitíssimo mais nociva do que a mais problemática minoria étnica, racial ou religiosa. Paga a peso de ouro comparativamente à massa anónima que efetivamente gera prosperidade, a dita casta nunca travou, pela frontalidade do rigor analítico e da crítica intelectual, a gestão ruinosa do país e insiste em ser parte ativa. Se provas fossem necessárias, basta olhar para a situação calamitosa do ensino básico e secundário, Forças Armadas, Polícias, gestão financeira, económica ou administrativa do Estado, gestão do património histórico edificado e urbanístico, famílias crescentemente disfuncionais ou falta de civismo. Se as simples ideias têm consequências, o saber académico pode arrasar um país em áreas cruciais: saúde, ensino, segurança, justiça, finanças públicas, defesa, por aí adiante.
Porque Roma e Pavia não se fizeram num dia, o Gabinete de Estudos do Chega está a ser orientado by the book. O seu escudo contra os Golias são os livros estratégicos que lhe serviram de berço: Um Século de Escombros – Pensar o futuro com os valores morais da Direita (2019), que explicita a rota para corrigir vícios morais e intelectuais de regimes políticos falhados; Novo Manual de Investigação (2018), que explicita o que uma sociedade tem de exigir aos conhecimentos universitários, e que orienta as relações entre as estruturas nacionais do Chega e as suas bases locais; O Ensino da História (2012) e A Pedagogia da Avestruz (2003), porque sem uma reforma profunda do ensino a prosperidade continuará uma miragem.
Os livros referidos são meros exemplos de muita matéria-prima intelectual que, a seu tempo, poderia ter ajudado a evitar erros graves do regime, mas que a imprensa silenciou e, bem pior, as universidades de compagnons de route ostracizam. Navegar contra a corrente nunca foi fácil, mas não temos escolha.