Circula entre certos sectores da direita uma tese segundo a qual Luís Montenegro teria cometido, relativamente ao Chega, dois grandes erros sucessivos. O primeiro deles seria ter assumido publicamente, perante todo o país, o compromisso de não fazer acordos de governo com o partido de André Ventura. O segundo suposto erro seria, para os mais cínicos, ter persistido nesse rumo e, face aos resultados de 10 de Março, não ter voltado com a sua palavra atrás, alegando que desse modo se colocaria Portugal em primeiro lugar ou outros motivos de força maior.

Ora, quem assim pensa não está a ver bem por várias razões de que destaco duas: um líder partidário que desse o dito por não dito e que quebrasse uma promessa solene feita durante a campanha eleitoral, perderia de imediato a sua credibilidade e respeitabilidade como pessoa e como governante. Não estaria em condições de liderar o seu partido nem o país. É claro que, com o famoso “não é não”, Luís Montenegro prometeu que não faria acordos de governo com o Chega, o que não impede que, no parlamento, fale com esse partido (e com os demais) com vista a conseguir entendimentos pontuais sobre medidas governativas ou questões parlamentares. E é também claro que, nesses casos, e perante a mais do que certa gritaria escandalizada da oposição de esquerda, que se agarrará a cada um deles para tentar incutir na opinião pública a falsa ideia de que Montenegro estaria a quebrar a sua promessa, o PSD deve ser rápido a reagir e vir a público relembrar que ao rejeitar acordos de governo com o Chega, Montenegro acrescentou que, no parlamento, falaria com todos — repito: com todos — os partidos. Esse constante refrescamento da memória dos eleitores será imprescindível para impedir que falsas ideias e narrativas manhosas se instalem nas convicções das pessoas. Dito isto, o “não é não” relativo a um acordo de governo deve ser rigorosamente respeitado.

E é imperioso que o seja não apenas por razões éticas e por respeito à palavra dada, mas porque não o respeitar seria politicamente suicida. Quem defende que o PSD deveria fazer um acordo global com o Chega não está a ter em conta as características e o modo de actuação do partido de André Ventura e do seu líder. Ventura é um actor político no sentido literal da expressão. Muito hábil nas artes histriónicas, faz da vitimização e do estardalhaço os seus principais trunfos. Actores como ele precisam de drama, de holofotes, de microfones, de constante tumulto e perpétua reclamação. Numa palavra, precisam de atenção, mediática ou outra. E de aplauso, claro. Um acordo de governo com um líder político com este perfil comportamental sujeitaria o governo a constantes sacões e solavancos, colocá-lo-ia quotidianamente à beira do rompimento e com lugar cativo, pelas piores razões, nas primeiras páginas dos jornais e na abertura dos telejornais. A solução para escapar à tenaz e à pressão de um líder político como Ventura é dar-lhe o mínimo de palco que for possível (algo que, paradoxalmente, eu aqui e agora não estou a fazer, mas será uma vez sem exemplo).

Se André Ventura fosse admitido a bordo e fizesse parte da viagem, a barca da governação enfrentaria quotidianamente mares encapelados porque o líder do Chega tem necessidade de agitar para aparecer. Ao contrário do que, na direita, supõem os ingénuos e os sôfregos pelo poder pleno e imediato, não é viável construir uma maioria sólida de braço dado com André Ventura, pois ela esfrangalhar-se-ia constantemente e com estrépito. O desempenho de Ventura e do seu partido no pós-10 de Março, alternando lágrimas e suspiros com ameaças, estridências e exigências, e culminando no triste espectáculo da eleição do presidente da Assembleia da República, durante o qual, e a pretexto de umas declarações de Nuno Melo, do CDS, Ventura se sentiu “desobrigado” — foi a palavra que usou — de cumprir o que previamente combinara com o PSD, é disso o mais recente exemplo e veio confirmar, se necessário fosse, que o “não é não” de Montenegro foi não um erro, mas um muito previdente e adequado aviso à navegação. Não apenas pelas diferenças que existem entre as direcções do PSD e do Chega —  diferentes visões do mundo, do que são boas políticas, das pessoas e dos seus direitos, etc. — , mas também, e sobretudo, porque não é possível, ou melhor, não é politicamente aconselhável, estabelecer acordos com personagens assim, pessoas que estão frequentemente a dizer que se sentem humilhadas ou espezinhadas por não terem a deferência e a atenção a que se julgam com direito.

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Seria muito interessante explorar o significado psicológico destes sentimentos de humilhação, mas não quero entrar por aí. O que quero é sublinhar que, a atentar no que se passou na abertura dos trabalhos parlamentares, Montenegro parece ter compreendido definitivamente a natureza do Chega e a personalidade do seu chefe, e o que, no fundo, está em causa, e em vez de acudir aos choros e rogos de Ventura, e aos seus convites e sugestões, ignorou-os e preferiu entender-se com Pedro Nuno Santos para se levar a bom porto a eleição do Presidente da Assembleia da República. Fez bem. Parabéns, por isso, ao PSD e ao PS, ou seja, à direita e à esquerda moderadas, que resolveram rapidamente o bloqueio causado pelo comportamento histriónico de André Ventura. Eu estou convencido de que se o Bloco de Esquerda tivesse 50 deputados teríamos um problema análogo, mas como felizmente não tem, o título de agitador e bloqueador máximo vai, sem contestação, para o líder do Chega. É bom, para a sanidade mental de todos nós, que na medida do possível o ignoremos e que o deixemos a falar sozinho — coisa que Ferro Rodrigues e Augusto Santos Silva não fizeram, o que foi um erro de pesadas consequências.

Essas consequências estão, agora, à vista de todos, numa representação parlamentar que em poucos anos, se multiplicou por 50, e na conduta nem sempre edificante e raramente construtiva desse grupo de deputados. Consequências que podem agravar-se se, ao contrário de Luís Montenegro e dos actuais dirigentes do PSD, os eleitores de direita não perceberem o que têm à sua frente. Na primeira declaração pública que fez assim que começaram a sair as previsões dos resultados eleitorais, André Ventura proclamou o fim do bipartidarismo e elevou o Chega a terceiro bloco do nosso quadro político-partidário pós-25 de Abril. Por infelicidade, que já abordei noutro artigo, essa visão do terceiro bloco foi perfilhada por muita gente à esquerda — Rui Tavares, por exemplo — e à direita, o que de certa forma lhe deu corpo e estatuto, e deve ter deixado André Ventura feliz e orgulhoso. Infelizmente o seu bloco, a existir e a não se esboroar nos anos vindouros, não é um terceiro pilar capaz de sustentar o tecto do nosso edifício democrático, é um cancro que está a corroê-lo.

Percebo que haja em muitos eleitores de direita uma pressa, uma ânsia, de remover inteiramente o PS das áreas de influência e de poder. Para essas pessoas, e tendo em vista esse objectivo, é muito tentador poder juntar os trapinhos com o Chega, cantar vitórias robustas e bronzear o corpo ao sol de uma sólida maioria parlamentar. Mas seria bom que essas pessoas percebessem que estão a deixar-se ir numa ilusão. O PS é um adversário político que se combate, mais ou menos eficazmente, com as armas e argumentos que temos ao nosso dispor, e dentro das regras da convivência, da urbanidade e do antagonismo democrático. O Chega é um inimigo disfarçado de potencial aliado, um falso aliado, que não respeita essas regras do jogo político, que tão depressa seduz como insulta, e cujo objectivo último é assumir o lugar e o papel do PSD e subverter o regime. Casar com o Chega, ir atrás dos cantos de sereia de André Ventura, ou ceder, por receio, às suas ameaças, seria, para os eleitores e simpatizantes do PSD, ceder a uma atracção fatal.

Por todas estas razões e por outras que eventualmente me escapem, Luís Montenegro deve manter-se absolutamente fiel ao seu “não é não”. Longe de ser um erro, é uma salvaguarda.