Ascensão da China, agressividade indomesticável da Rússia, deserção no Afeganistão, incapacidade de controlar a pandemia nas sociedades mais desenvolvidas, culpa pelas alterações climáticas, racismo sistémico e absoluto. Estamos em crise, estamos a ser derrotados, e merecemos o destino que se abate sobre nós. Ultimamente, os artigos de jornal e ensaios de especialistas sobre a situação política internacional parecem um velório do Ocidente. Talvez seja tempo de reagir a este exagero autodestrutivo e a esta falta de convicção nas virtudes do mundo que construímos ao longo de séculos. Antes que outras opções bem mais desagradáveis ganhem território e entusiastas.

O mundo depois da Guerra Fria parecia um tempo de paz potencial, de cooperação em vez de competição e de crescimento para todos. Durante muito tempo, praticamente trinta anos, pareceu possível viver para sempre assim. Mesmo os críticos das teses do fim da História parecem ter acreditado que o Ocidente podia tudo, inclusive assegurar a paz no mundo, os direitos humanos em toda a parte e submeter os desalinhados. Só assim se explica o espanto, o derrotismo, com que olham para o regresso da competição e das tensões internacionais. Como se não fosse esse o estado normal das coisas. Mas é.

Quem ler a última edição da Revista Foreign Affairs, como tantas outras publicações, descobrirá, um atrás do outro, artigos a teorizar sobre os erros e responsabilidades ocidentais no mal-estar do mundo. É por causa da NATO se ter alargado tanto e para tão perto da Rússia que Moscovo perdeu a paciência e desestabiliza à sua volta; como se o expansionismo russo fosse uma novidade, ou um preço que alguns países mais próximos deviam estar dispostos a pagar. Foi a nossa globalização que, fazendo crescer a economia da China, que trouxe para a Organização Mundial do Comércio, enriqueceu o adversário; como se a globalização não tivesse, ao mesmo tempo, tirado milhões da pobreza, na Ásia, e dado a milhões da classe média ocidental o acesso ao que era praticamente exclusivo dos ricos, das máquinas à roupa. É o nosso consumismo que delapida os recursos do planeta; como se o conforto que conseguimos não fosse o sonho das gerações, aqui e noutros lugares do mundo, que há bem pouco tempo comiam mal, passavam frio, não imaginavam viajar e não desconfiavam o que fosse o lazer (sem falar dos milhões que ainda sonham com isso).

A este sentimento de culpa pelos males do mundo acresce uma sensação de fraqueza global. Putin não se submete, Lukashenko não obedece, Pequim não se intimida. Vivemos angustiados entre a ilusão de devermos ser uma potência absoluta e acharmos que somos uma impotência total.

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Trinta e poucos anos depois do fim da Guerra Fria, parece que o Ocidente perdeu, que tem culpa de ter perdido e que merece perder. Como se fosse suposto a História, e a história dos conflitos, ter acabado; como se fosse suposto ser possível fazer o resto do mundo submeter-se aos nossos bons valores; e, mais grave que tudo, como se este lado do mundo não fosse muito, mas mesmo muito melhor que todas as opções. E o único que podemos melhorar.

Perante a agressividade da Rússia, a rivalidade com a China, a ameaça climática, as infinitas insuficiências do nosso modelo, podemos fazer-lhe o obituário ou recordar que uma das razões porque (e para que) o Ocidente ganhou a Guerra Fria foi ter um modelo preferível, e o único que pode ser corrigido sem violência.

Sem ilusões de perfeição, é melhor o Ocidente aceitar que não vai mudar nem melhorar o mundo todo, reconhecer que a competição é a situação normal, e voltar a acreditar nas suas virtudes, a começar pela liberdade, e na sua capacidade única de regeneração. Ou isso, ou ser derrotado por si.