Foi em 18 de março, há quase um mês, que o Presidente da República fez o que poderá ter sido o discurso político mais determinante das últimas décadas em Portugal e, sem dúvida, o discurso mais importante do seu percurso. Nele, enquadrou e fundamentou a declaração do estado de emergência que havia acabado de decretar. Decorrido o período desse “primeiro” estado de emergência e estando já em curso a “renovação” do mesmo, importa analisar o conteúdo desse discurso, já que é aí que radica a razão por que vivemos e, já declaradamente, porque continuaremos ainda a viver por mais tempo esta nova realidade constitucional.

Lamentavelmente, esse discurso constitui hoje letra-morta, pelo que esta análise será uma autópsia.

O discurso começou saudável, de face limpa e olhos abertos: o estado de emergência tinha sido decretado, e essa era a primeira coisa que havia de ser afirmada. A parte descritiva do quadro de excecionalidade vivido no País também não destoou do que já havia sido progressivamente percebido por todos, apesar do apelo à imagem bélica. O cidadão Marcelo prosseguiu sem falha, reconhecendo e aderindo à reação efetiva da generalidade dos seus concidadãos, das empresas e da sociedade civil, que tinha sabido começar a resguardar-se, uns, e a prestar o seu trabalho e esforços de forma inexcedível, outros, mesmo sem diretivas do Governo ou até em sentido desviante do que daí lhes era sugerido, como no caso das escolas.

Postas as coisas nestes termos, o Presidente elencou depois as “cinco razões essenciais” que determinavam a sua decisão. Seguirei então o seu guião e abordarei cada uma delas.

1Antecipação e reforço da solidariedade entre poderes públicos e deles com o Povo.

Se a “solidariedade entre poderes públicos” (nomeadamente este Presidente, esta Assembleia e este Governo da República) era já bastante evidente e nunca necessitou de uma declaração de estado de emergência para ser praticada, a “solidariedade” destes poderes centrais para com os poderes locais já deixou muito a desejar, tendo esta parte do discurso “envelhecido” mal.

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Quanto à vertente de solidariedade destes poderes “com o Povo”, tal pareceu, logo nesse dia 18, dissonante com a primeira parte do discurso, onde o Presidente reconhecia que esse Povo, de uma forma livre e generalizada, havia já antecipado no terreno o que agora se escrevia no decreto.

Aceitando-se, no entanto, como estou disposto a aceitar, a necessidade de uma declaração de estado de emergência para reforçar a eficácia e generalização desse esforço do País que já se observava, o busílis está em saber QUE estado de emergência (com que medidas concretas) propôs o Presidente ao Povo no(s) seu(s) decreto(s).

Se há medidas fáceis de compreender, como as relacionadas com as limitações à liberdade de circulação, deveres de confinamento ou limitações à realização de aglomerações de pessoas, torna-se mais difícil perceber que sejam uma manifestação de “solidariedade com o Povo” as medidas previstas no artigo 4.º,  alíneas b) – medidas de limitação à propriedade e à iniciativa privadas – e c) – medidas de limitação dos direitos dos trabalhadores – com a amplitude em que foram descritas no primeiro decreto e depois ainda mais reforçadas no segundo.

Na verdade, nos instrumentos que mais potencial “solidário” teriam, que seriam os à disposição da Segurança Social, a prática governamental que se observou durante a vigência deste estado de emergência foi a de reforçar ainda mais a divisão do Povo no “sistema de castas laborais” vigente, em que:

  • Funcionários públicos mantiveram o seu emprego, recebem por inteiro e ainda foram aumentados e tiveram folgas de Páscoa;
  • Mais e mais trabalhadores do setor privado são colocados em lay-off com quebra de vencimento ou enfrentam desemprego;
  • Profissionais liberais (mas não todos, veja-se os advogados) podem aceder a um apoio, mas são forçados a cessar por completo a sua atividade para o poder fazer;
  • E, chegando aos “proscritos” do sistema, os micro e pequenos empresários que criaram postos de trabalho ficam sem nada.

Parece-me, pois, que o estado de saúde do discurso começou desde logo neste ponto a desenvolver insuficiências.

2Prevenção”.

Neste ponto, o Presidente da República arrancou com sabedoria popular: “Diz o povo: mais vale prevenir do que remediar.” A essa sabedoria, adiro sem reserva. Infelizmente, penso que lhe escapou exatamente o que deveria estar a prevenir com a declaração do estado de emergência, o que é estranho, já que o Prof. Dr. Marcelo Rebelo de Sousa é, além de Presidente da República, um reputadíssimo constitucionalista.

Nos termos constitucionais, o estado de emergência não visa abrir um “all-you-can-eat buffet” de possibilidades de limitação de direitos fundamentais.

Na verdade, é exatamente o contrário: a Constituição exige que se respeite uma dieta rigorosa de proporcionalidade, devendo o estado de emergência “…limitar-se, nomeadamente quanto às suas extensão e duração e aos meios utilizados, ao estritamente necessário ao pronto restabelecimento da normalidade constitucional.” É esse, aliás, o fundamento e fim último do estado de emergência: o pronto restabelecimento da normalidade constitucional.

Ou seja, num contexto de declaração de estado de emergência, “prevenir” é, havendo dúvidas sobre a necessidade de impor limites a algum direito fundamental, não o fazer; “remediar” é, concluindo-se que certos limites eram desnecessários ou excessivos, retirá-los ou diminuí-los.

Incompreensivelmente, o Presidente, não tendo “prevenido” no primeiro decreto, acabou por também não “remediar” aquando da renovação do estado de emergência, já que, mesmo tendo, em grande parte, sido demonstrado que não eram necessárias (por não terem originado nenhuma medida governamental), toda a panóplia de limitações previstas nas alíneas b) e c) do n.º 4 foram não só mantidas, como até foram reforçadas.

Um claro caso de obesidade neste ponto, com sérias consequências para a saúde do discurso.

3Certeza”.

A certeza a que o Presidente se referiu aqui é uma certeza de “fundamento jurídico das medidas já tomadas e a tomar”. Sou especialmente sensível a este argumento e é inclusive nele que respaldo o meu entendimento de que um estado de emergência era, de facto, necessário. No entanto, ele era necessário antes do dia 18 de março, e não era necessário nos termos em que foi decretado.

Enquanto jurista e liberal, não estou disposto a aceitar que o que se passou, por exemplo, em Ovar, com uma espiral de medidas restritivas até à declaração do cordão sanitário, possa ocorrer num quadro de normalidade constitucional. Independentemente de tal medida estar prevista em texto de Lei, não a considero conforme à Constituição. Ora, se tais medidas eram necessárias, e aceito que o fossem, era então preciso decretar o estado de emergência (limitado ao estritamente necessário) previamente à aplicação dessas medidas.

Intuo que o constitucionalista Marcelo concorda comigo, já que ele afirmou pretender, com o decreto, respaldar “medidas já tomadas”. No entanto, o Presidente Marcelo pareceu conviver muito bem com vários dias de Estado de Direito sonegado, impondo um compasso de espera à sua decisão que não vislumbro entender.

Portanto, este argumento do discurso, se bem que ajustado, padecia já de uma condição preexistente.

4Contenção”.

Neste ponto remeto para o que já expus nos pontos 1. e 2., pois creio já estar aí demonstrado que não houve “contenção” no primeiro decreto de estado de emergência, muito menos no decreto da sua renovação.

5Flexibilidade”.

Este argumento, se bem entendido, acaba por determinar o esvaziamento do argumento da “Prevenção”. Ou seja, se de facto o estado de emergência apresenta uma grande flexibilidade, já que tem associado a ele um “prazo de validade” curto (máximo 15 dias) e, tal como se pôde verificar aquando da renovação, pode ser tramitado entre todas as instituições em cerca de 24 horas, porque é, então, necessário prever medidas que ainda não se sabe se serão necessárias?

Não seria mais adequado que, num processo tão flexível, se fosse ajustando os limites do estado de emergência ao que é estritamente necessário, nem sendo sequer obrigatório esperar por cada 15 dias (caso algum ocorresse alguma urgência)?

De todo este conjunto de argumentos, chega-se à conclusão de que este discurso já se encontrava afligido de comorbidades. No entanto, a verdadeira causa de morte está identificada; residiu numa condição cardíaca fulminante, atingindo o “coração” do discurso.

De facto, no seu registo mais “emotivo”, o Presidente da República procedeu a um apelo e a uma garantia solene de Verdade. Assumiu-se também como o primeiro dos responsáveis perante os Portugueses. Esta afirmação, porém, veio muito rapidamente chocar com a realidade.

Não havia passado uma semana e já ocorria a primeira síncope, com a bizarra afirmação em “prime-time” do Primeiro-Ministro de que “Até agora não faltou nada no SNS e não é previsível que venha a faltar.

Prosseguiram mais arritmias, com as insistências constantes da Ministra e da Diretora-Geral da Saúde de que as pessoas não usassem máscaras, repetindo o obsessivo “mantra” da “falsa sensação de segurança”, em vez de se afirmar o óbvio: de que não havia máscaras para todos, e por isso se desaconselhava o uso.

Os relatórios diários da DGS começaram a demonstrar sinais cada vez mais evidentes de arteriosclerose, com o fluxo de dados a ser cada vez mais difícil de acompanhar, perdendo credibilidade.

O “coração” do discurso (a Verdade) já se encontrava bastante fragilizado nesta fase, mas foi com o mais recente comportamento do Governo (com a conivência da AR, quando foi precisa), na gestão da informação relativa a esta pandemia que se deram os ataques mais graves.

Desde logo, ao declarar-se que os dados epidemiológicos seriam partilhados com a comunidade científica; depois, em simplesmente não o fazer e ignorar os pedidos de cientistas; depois ainda, numa cada vez mais reforçada união do Bloco Central PS/PSD, votando na AR contra uma recomendação apresentada pelo deputado da Iniciativa Liberal, João Cotrim Figueiredo, para que essa partilha fosse feita; e finalmente, num recuo só aparente, disponibilizando-se agora, no site da DGS dedicado ao Covid-19, um formulário para ser preenchido pelos cientistas que pretendam aceder a essa informação, formulário relativamente ao qual não há preocupações de cumprimento das regras de proteção de dados pessoais, que tanto apoquentavam antes estes governantes.

O enfarte fulminante e fatal foi, porém, a determinação da “lei da rolha” na divulgação da informação pelos delegados locais e regionais de saúde, que faziam essa partilha, com naturalidade e ganho para todos, com os autarcas da sua área. Numa decisão que evoca cenários arrepiantes, o Ministério da Saúde decidiu avocar a si ser também o Ministério da Verdade.

Confirmada a causa de morte, resta levar à terra este discurso. R.I.P.

Ao seu autor, no entanto, exige-se que cumpra o seu papel como o garante da Constituição (de toda ela e não só da parte que fala do estado de emergência) e que assuma o que disse ser, o primeiro dos responsáveis perante os Portugueses. Terá já nova oportunidade de o fazer a partir do próximo dia 18 de abril.