No presente ano letivo, o Ministério da Educação decidiu iniciar o Projeto de Desmaterialização das Provas de Avaliação Externa, com a realização das Provas de Aferição em computador ou tablet. Defende o Ministro da Educação que, «para que o processo de realização das mesmas decorra de forma equilibrada», se deve optar pelo formato digital, «garantindo a todos, e muito particularmente aos alunos, as melhores condições para a realização das provas de aferição, enquanto instrumentos fundamentais de apoio ao processo de ensino e de aprendizagem» (Despacho n.º 3232-B/2023).

Assim, os alunos dos 2.º, 5.º e 8.º anos vão utilizar o seu computador para aceder a uma plataforma do IAVE e aí efetuarem as Provas de Aferição. Estas provas, segundo o Instituto de Avaliação Educativa (IAVE), «têm como propósito formativo acompanhar o desenvolvimento do currículo e dar informação atempada aos intervenientes no processo educativo, de modo a permitir intervenções pedagógicas eficazes durante o percurso de aprendizagem dos alunos.».

O que dizer sobre o facto de os alunos terem acesso à internet e poderem googlar tudo o que quiserem? O que dizer da dificuldade em escrever matemática no formato digital? O que dizer de se colocarem crianças de 2.º ano nestas aflições digitais? O que dizer da possibilidade de a prova ser realizada à distância por outrem com acesso ao computador do aluno? Sobre estas questões nem uma palavra do ministério.

Em 2019, dizia, demagogicamente, Tiago Brandão Rodrigues: «[As provas de aferição] servem, primeiro que tudo, para que os professores, os alunos e as famílias saibam verdadeiramente os progressos que cada aluno está a fazer, o que já aprendeu e também aquilo em que poderá melhorar. Servem ainda para que tenhamos uma visão de conjunto sobre como estão os alunos a aprender, em cada escola e a nível nacional. Isto é muito importante para definir o que poderá ter de se rever ou reforçar, no projeto da escola ou nas próprias políticas educativas.» (Visão Júnior, 09/05/2019). Será que o Ministério da Educação anda tão deslocado da realidade que desconhece que, sistematicamente, os professores estão a dar informação ao aluno e à família sobre «o que já aprendeu e também aquilo em que poderá melhorar»?

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À primeira impressão, tudo parece fazer-nos crer nas boas intenções dos governantes da área educativa. Porém, tudo indica que estas boas intenções fazem parte das que, segundo o ditado popular, vão enchendo o inferno que se vive na Educação. Com o desgaste maioritário da maioria requentada, vai-se tornando evidente que os portugueses começam a ficar cheios das desastrosas intenções governativas. Com o formato desenhado para a realização destas provas está verdadeiramente a contribuir-se para diminuir o prestígio da escola, do ensino e da aprendizagem, falseando os resultados, no sentido de os empurrar para cima.

O formato digital favorece, em esmagadora extensão, a opção por questões de escolha múltipla (EM), que já vem sendo exagerada em muitas provas, o que impede que o aluno expresse todo o conhecimento adquirido. Em 2019, antes da pandemia, nos exames nacionais de 12.º ano de Português e Matemática A, um terço das cotações foi atribuído a questões EM. Em 2021, nas provas do 9.º ano, a de Matemática tem 28% de EM e a de Português tem 45% de EM. Uma prova de Português em que 54% dos itens não exigem a escrita de uma única frase! Que desconsideração pela escrita! Que superficialidade na avaliação!

Ora, quando se pretende avaliar as aprendizagens, as questões de escolha múltipla têm enormes limitações e perversões. Vejamos algumas.

Um bom aluno, que domina os conceitos envolvidos e as propriedades a aplicar, comete um pequeníssimo erro de cálculo. Se se tratasse de uma pergunta de resposta aberta, esse aluno obteria, provavelmente, mais de 90% da cotação. Tratando-se de uma questão de escolha múltipla, esse bom aluno obtém 0% da cotação.

Um aluno que nada sabe sobre a matéria em causa pode conseguir uma prestação razoável apenas porque respondeu à sorte. Se, após o teste, os professores fizessem uma prova oral sobre as escolhas múltiplas, talvez ficassem espantados com a fração de alunos que, não revelando nenhuma aprendizagem sobre o assunto, apenas acertaram por acaso.

Um aluno médio que em pergunta de resposta aberta tenderia a dar a resposta correta, mas que, em escolha múltipla e perante as opções, fica na dúvida, baralha-se e altera a sua resposta, perdendo a cotação.

A possibilidade de cópia é facilitada. Com técnicas muito simples de comunicação gestual, facilmente os alunos comunicam entre si as respostas a perguntas de escolha múltipla. Creio que todos os professores já se depararam com casos de alunos que têm uma taxa de sucesso nas questões de escolha múltipla muito superior aos resultados que obtêm nas perguntas de resposta aberta.

Imagine-se que se pretendia saber se os portugueses fixavam, ao cêntimo, a despesa que faziam no supermercado. Suponha o leitor que lhe perguntavam qual foi o valor exato que pagou na sua última ida ao supermercado. Dadas as dificuldades financeiras por que muitos portugueses estão a passar, é natural que haja uma boa fração que tenha uma ideia aproximada desse valor, mas não é crível que a taxa de respostas certas consiga afastar-se muito dos 0%. Contudo, se a pergunta for acompanhada por opções de resposta, entre as quais a correta (por exemplo, 18,11€, 21,80€, 39,07€ ou 54,35€), então o caso muda de figura, e a taxa de respostas certas vai aumentar artificialmente e pode até aproximar-se bastante dos 100%. Portanto, com uma simples estratégia assente no formato da resposta, seria facílimo concluir que os portugueses, enormemente preocupados em controlar as despesas do supermercado, são exímios a fixar, até ao cêntimo, o valor gasto nas compras. Contudo, estaríamos perante um grosseiro falseamento das conclusões.

Se não tenho dúvida de que qualquer leigo em avaliação consegue distinguir esta adulteração de resultados, o que dizer de um instituto especializado em procedimentos de avaliação, como é o caso do IAVE?

Relato-vos uma experiência que tenho feito, com regularidade, em mais de três décadas de ensino, a jovens acabados de entrar no Ensino Superior. A propósito da representação de datas em numeração romana e outras questões de matemática elementar, questiono-os sobre o ano da fundação de Portugal, o ano da restauração da independência, o ano da implantação da República, ou, por exemplo, acerca da definição de número primo ou sobre o que entendem por litro, entre várias outras perguntas de cultura escolar sobre matérias que se espera terem ficado sedimentadas ao longo do ensino básico.

As taxas de respostas corretas têm revelado, ao longo dos anos, uma tendência claramente decrescente, e pode dizer-se que chegam a ser miseráveis, atingindo com frequência o zero. Porém, quando a pergunta é acompanhada por um conjunto de possibilidades de resposta, que inclui a correta, as taxas de sucesso explodem, embora fiquem sempre, lamentavelmente, longe dos 100%.

Para testar as aprendizagens, não é natural que, para cada pergunta que se faça, se apresente uma lista com duas, três ou quatro hipóteses entre as quais está a resposta correta. Isso é falsear a taxa de conhecimentos adquiridos. Sabemos bem que, através de perguntas de resposta aberta, onde os alunos têm de revelar capacidade de chegar à resposta pelos seus próprios meios, raciocinando sobre os dados revelados pela pergunta, se distinguem claramente os alunos que possuem maior domínio dos conhecimentos e também os alunos cujas aprendizagens estão debilitadas e que, de acordo com a boa intenção do Ministério, têm de ser, juntamente com as respetivas famílias, informados do défice detetado, ajudados a melhorar e motivados para maior esforço, disciplina e empenho.

As Provas de Aferição são uma mais-valia para o sistema educativo e para o aluno, valorizando o cuidado em acompanhar as aprendizagens, mas deveriam ser complementadas com Provas de Final de Ciclo, para que se pudesse comprovar o resultado da «informação atempada» e das «intervenções pedagógicas eficazes».

Desmaterializar as provas de avaliação externa é mais um passo para as sobrecarregar com perguntas de escolha múltipla (por vezes com apenas duas opções), é permitir que, com frequência, a opção correta seja selecionada por impressão ou simplesmente ao acaso, é transmitir a ideia de que se aprende por adivinhação, por aproximação ou por acaso, o que é um brutal e terrível absurdo.

Se uma prova em formato digital, cheia de perguntas de escolha múltipla, fosse realizada por uma criança neozelandesa, que não conhecesse uma única palavra de português, seria possível que a classificação se afastasse do zero, apesar da completa nulidade na compreensão das perguntas.

Lembro-me de ter lido uma rábula platónica sobre a inteligência do cão que, perdendo-se do dono no meio da floresta, utiliza o faro para o perseguir. Entretanto, o caminho chega a uma trifurcação. O cão opta pelo caminho da esquerda, com o focinho colado ao chão e a cauda em baixo, anda meia dúzia de metros e volta para trás. Segue pelo caminho do meio e, novamente com o focinho junto ao chão à procura do odor familiar, anda alguns metros e volta para trás. Em seguida, de focinho levantado e com a cauda a abanar, segue alegremente pelo caminho da direita.

Concordamos que, em alguns casos, como no caso do cão que se perdeu, o raciocínio por exclusão de partes é logicamente válido. Contudo, ajudar as crianças a aprender a raciocinar, a resolver problemas, a saber de memória factos ou definições nada tem de adivinhação ou de “bruxaria”. Os principais problemas que se nos colocam ao longo da vida nunca vêm acompanhados da solução. A solução dos problemas reais, quando existe, não está disponível num escaparate. Adquirir conhecimentos e aprender a resolver problemas é uma das maiores capacidades humanas e é, evidentemente, a que mais nos distingue como espécie, sendo uma capacidade que se desenvolve com método, com treino, com repetição e com tarefas adequadas que os professores propõem aos seus alunos.

Estes processos são desenvolvidos por quem acha que os consegue fazer passar em “ângulo morto”, na sombra da demagogia governativa, sendo propositadamente desenhados para que se possa insistir na propaganda de que, apesar dos anos desregulados da pandemia, da falta de professores e da falta de condições de algumas escolas, as aprendizagens continuam, por artes mágicas, no excelente top socialista. Tratar deste modo as nossas crianças é uma afronta à inteligência humana. Quem poderá ter confiança nos resultados obtidos?

Só se pode verdadeiramente avaliar a aquisição de conhecimentos se se permitir espaço para o aluno demonstrar a sua estratégia, desenvolver o seu raciocínio e construir a sua resposta, dando-lhe oportunidade para expressar os seus conhecimentos, pensamentos e raciocínios livremente. É na avaliação detalhada dessa construção que o professor deteta as falhas, as aprendizagens que ainda não estão sedimentadas, e isso é fundamental «para definir o que poderá ter de se rever ou reforçar», conforme a boa intenção do ex-ministro.

Ficamos, ansiosamente, à espera dos relatórios elaborados sobre a qualidade das aprendizagens que a execução destas provas de aferição terá demonstrado.