Se é verdade que o Papa Francisco já nos habituou às surpresas – valha o paradoxo! – a recente viagem ao Grão-Ducado do Luxemburgo e à Bélgica não foi excepção. É certo que não foram novidade as contundentes declarações do Santo Padre em relação ao aborto e à responsabilidade moral dos médicos que se prestam a esse ignóbil serviço, que desmerece da sua profissão e contradiz o juramento hipocrático, mas foi surpreendente a homenagem de Francisco ao falecido Rei Balduíno.

As referidas declarações de Francisco, na conferência de imprensa dada a bordo do avião de regresso a Roma, causaram escândalo na Bélgica, ao extremo do primeiro-ministro chamar o Núncio Apostólico em Bruxelas, para lhe manifestar o seu desagrado. A indignação do primeiro-ministro prova a conveniência da intervenção pontifícia: não é nos países que respeitam os direitos humanos que estes devem ser lembrados, mas naqueles em que são espezinhados. Ora a Bélgica é um dos países europeus que mais regrediu modernamente no que respeita ao mais básico direito humano: o direito à vida. Com efeito, a Bélgica não só liberalizou a dita ‘interrupção voluntária da gravidez’, como também legalizou a eutanásia, que já se aplica, em virtude do conhecido efeito da rampa deslizante, a pessoas depressivas e jovens.

No mesmo dia do seu regresso a Roma, o Papa Francisco visitou a cripta da Igreja de Santa Maria de Laeken, que é o panteão da Casa Real belga, para prestar homenagem ao Rei Balduíno, falecido em 1993, com fama de santidade. Tanto o Rei Alberto, que sucedeu a Balduíno no trono belga, como o seu filho, o actual Rei Filipe e sua mulher, a Rainha Matilde, acompanharam o Santo Padre neste momento de oração junto dos restos mortais do Rei Balduíno, que faleceu sem geração.

Na última celebração eucarística presidida pelo Papa na Bélgica, Francisco, referindo-se a Balduíno, expressou um desejo que, a bem dizer, é uma muito clara e expressa indicação para o episcopado belga: “Que o seu exemplo de homem de fé ilumine os governantes. Peço que os bispos belgas se empenhem para levar por diante esta causa”. Falecido há 31 anos, o processo de beatificação deste monarca belga parece estar adormecido, talvez porque a questão do aborto é ainda um tema fracturante na sociedade belga, como se verificou pela excessiva reacção do primeiro-ministro.

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O Papa Francisco manifestou o seu desejo de que avance quanto antes o processo de beatificação do antepenúltimo monarca belga, que é um “exemplo de homem de fé”. Segundo nota da Santa Sé aos jornalistas, o Papa “exortou os belgas a olharem” para o Rei Balduíno, “neste momento em que se fazem leis criminosas”, numa referência à legalização da eutanásia, ao mesmo tempo em que desejou “que a sua causa de beatificação prossiga”. É vontade do Santo Padre que, confirmada a santidade deste monarca, o seu exemplo seja proposto a todos e, especialmente, “ilumine os governantes”. Assim sendo, poderá em breve juntar-se a São Tomás More, e ao Beato Carlos I de Áustria, o último Imperador austro-húngaro. Pelo contrário, não têm faltado os políticos denominados católicos que, contradizendo a fé cristã, têm proposto, aprovado e promulgado leis que legalizam o aborto e a eutanásia.

O Papa Francisco, ao rezar junto à sepultura do Rei Balduíno, lembrou o gesto heróico deste monarca belga quando, nos dias 4 e 5 de Março de 1990, renunciou ao exercício da sua função real, para não promulgar a lei que, no seu país, legalizou a ‘interrupção voluntária da gravidez’. Ao contrário de um primeiro-ministro, ou de um presidente da República, que são política e moralmente responsáveis pela legislação que promovem, aprovam, ou promulgam, o monarca belga o não é, em termos políticos e morais, porque não tem qualquer intervenção na elaboração das leis, que dependem única e exclusivamente do Governo e do Parlamento, aos quais cabe, portanto, toda a responsabilidade ética e política. Assim sendo, o Rei Balduíno, ao contrário de um primeiro-ministro ou de um presidente da República, poderia ter promulgado a lei sem apostatar a sua fé, nem faltar aos seus deveres morais enquanto cristão, o que reforça a nobreza e o heroísmo da atitude que protagonizou. Francisco elogiou a coragem de quem decidiu “deixar o seu cargo de rei para não assinar uma lei assassina”.

O risco que então correu a monarquia belga era tanto mais real quanto a instituição se encontrava numa situação de instabilidade institucional. Com efeito, a monarquia belga, que é de recente criação, viu-se afectada pelo comportamento ambíguo do pai de Balduíno, o Rei Leopoldo III, durante a ocupação nazi. Exilada a família real na Suíça, só pôde regressar à Bélgica em 1950, depois de resolvida a seu favor a chamada ‘questão real’. Embora um referendo nacional decidisse a permanência da instituição monárquica, Leopoldo III abdicou em 1951, razão pela qual Balduíno se viu obrigado a ocupar o trono com apenas 21 anos e ainda solteiro. Ao tomar uma decisão que, embora bem aceite pelos cristãos e pelos defensores dos direitos humanos, foi muito criticada pelos sectores laicos e por quantos na sociedade belga defendem a cultura da morte, Balduíno pôs seriamente em risco a monarquia belga.

O Cardeal Suenens, na sua biografia do Rei Balduíno, explica que a decisão deste em relação ao aborto foi tomada apenas e só por um imperativo de consciência, mesmo que tal implicasse a sua abdicação definitiva e, até, o exílio. Para dissuadir qualquer tentativa no sentido contrário, afirmou que, mesmo que o Papa lhe tivesse pedido para promulgar essa lei iníqua, não o faria nunca, por uma questão de consciência e porque, se o fizesse, seria injusto e cobarde. Segundo Suenens, “o que ditava a sua decisão era o pensamento de que, se Deus o tinha colocado naquele lugar, seria injusto e cobarde da sua parte não acarretar com as consequências dos seus actos e fazê-las recair sobre outros. ‘Nem sequer o Papa – disse ele aos seus ministros – me faria mudar de opinião’.” (Cardinal Suenens, Le Roi Baudouin, Une vie qui nous parle, 14.ª edição, Éd. F.I.A.T., 1995, pág. 127).

Na viagem de regresso a Roma, o Papa Francisco foi interrogado pela jornalista Valentine Dupont, da radiotelevisão belga em língua francesa, sobre o significado da sua homenagem ao Rei Balduíno. O Santo Padre, de novo, elogiou a coragem do soberano: “O Rei [Balduíno] foi corajoso porque, perante uma lei de morte, não assinou e demitiu-se. É preciso ter coragem! Para fazer isto, é preciso ser um político ‘que veste calças’. É preciso coragem! Era uma situação especial e, com esse seu gesto, o Rei Balduíno transmitiu uma mensagem. Fê-lo também porque era um santo. Aquele homem é um santo e, porque me deu provas disso, o processo de beatificação continuará.” Fazendo eco ao Papa Francisco, rezemos nós também pela sua rápida beatificação: Rei Balduíno, ‘santo súbito’!