Era sábado, o sol espreitava pelas portadas. Levantava-me ainda sonolento, ainda indeciso. Como todos os fins-de-semana, o tempo era meu. Era eu que o comandava. Só tinha de decidir que fazer, e ficar inerte estava fora de questão!

Decidi-me pelo ginásio, mas tinha de me despachar. Se retardasse a marcação seguramente já não teria vagas. As “habituais” rapidamente esgotavam os lugares, já para não falar nos da frente. Esses eram-me proibidos. Não é que me importe muito ficar atrás! Ver aqueles glúteos a saltitar ao ritmo de uma música “techno” ou, como uma vez aconteceu, vê-los ao som de um Adágio for Strings de Samuel Barber “assassinado” num ritmo “electo”, era, digamos, revigorante. Por entre “os habituais” havia como que um sentimento hierarquizado em que todos sabiam o lugar a ocupar. O professor dessa aula tinha esses predicados. Nos seus vinte e poucos anos, esgotava sempre a sala e invariavelmente tinha as primeiras filas preenchidas por “habituais”, que, por entre risinhos, gemidos e suor davam e prometiam o melhor de si.

O Bernardo era assim. Cativava. Não só pelo ar escorreito, mas também pela simpatia e afabilidade que irradiava. Não havia quem dele não gostasse. Era uma daquelas pessoas que entra numa sala e logo nos faz sentir transparentes! Era como se deixássemos de existir. O Bernardo era assim.

Mas esse sábado não era um sábado normal. Grassava por entre os habituais um burburinho em tons de azul, daqueles que se entranham e gelam a alma muito antes de percebermos o que aconteceu. No dia anterior tinha ocorrido um acidente. O Bernardo nunca mais daria aulas de Icycle.

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Nos seus vinte e poucos anos o Bernardo tinha uma vida muito preenchida e numa dessas actividades teve um acidente grave tendo ficado tetraplégico. Aos vinte e poucos anos, o Bernardo ficou numa situação de vulnerabilidade cujo sofrimento não consigo imaginar. Ver-se assim dependente de familiares e amigos para as necessidades mais básicas, ver-se assim aos vinte e poucos anos, quando, uma semana antes, um dia antes, uma hora antes, era não só dono do mundo como dono do seu mundo, era como ver o palco da vida ser desmontado sem ter desempenhado o papel destinado.

O Bernardo sofria, e nesse sofrimento não sei se chegou a ponderar pôr-lhe um fim. Sei antes que familiares e amigos nunca o abandonaram e se ideias desse tipo lhe assoberbaram o espírito, elas nunca foram uma obsessão. O Bernardo era desse tipo de pessoas. Dessas que junto a uma porta fechada encontram sempre um janela entreaberta.

Agora, ao fim de alguns anos e muita luta, o Bernardo ganhou alguma mobilidade, recuperou força de viver e força para viver como gosta. O Bernardo é um peregrino que percorre mundo e com o seu exemplo motiva todos aqueles que foram vítimas de infortúnio. Longe vão os anos dos glúteos, mas o Bernardo continua no seu percurso a ser um exemplo para todos nós. Já há anos que o não vejo, mas tenho a certeza que se entrasse numa qualquer sala todos nós nos sentiríamos “invisíveis” mas agora encadeados pelo seu exemplo.

Se vos conto esta história é porque sempre que vejo discutir o tema da “morte assistida” dela me lembro. Mas vejamos como aqui chegámos.

A esperança média de vida aumentou muito nos últimos séculos. Ela passou de menos de 30 anos na Idade média para mais de 80 anos em 2020. A quase multiplicação por três da longevidade média resultou tanto de políticas de saúde pública sobre a mortalidade infantil como das medidas e regras de segurança de que nos rodeamos. Os cuidados de higiene, o tratamento das nossas emissões e as medidas higiossanitárias aplicadas aos bens que diariamente consumimos foram sem dúvida o grande motor do que é uma conquista da contemporaneidade. A actual esperança média de vida resulta assim da organização dos estados, do estado social, mas também do antropoceno. Do lado bom do antropoceno.

Desiludamo-nos. Não há nem houve nenhuma evolução genética que dentro da miopia do nosso limite temporal tenha resultado no facto de em 2020 termos perto de 2000 portugueses com mais de 100 anos quando há vinte anos os “centenários” não atingiam os 400. Em vinte anos quase quintuplicou.

Houve claramente um aumento da esperança média de vida e não o que habitualmente ouvimos, “as pessoas vivem mais anos”. Não, não vivem! Há é mais pessoas a atingir esse patamar. E isso não se deveu a nenhum “upgrade genético” darwiniano dos sapiens como alguns gostam de sonhar. Talvez se aproxime mais das teorias de Trofim Lysenko, mas isso são contas do outro rosário.

Com os padrões de segurança de que nos rodeámos, a morte inexpectável, violenta, tornou-se a excepção. Passou a ser a notícia sensacionalista. Como escreveu Philip Roth, “se somos saudáveis e nos sentimos bem, então morremos lentamente”. Morremos lentamente e fazemo-lo na comunidade que nos viu crescer e assistiu ao nosso processo de envelhecimento. Sempre pertencemos a um grupo, ao nosso grupo.

O bom selvagem de Jean-Jacques Rousseau nunca existiu. Os sapiens sempre foram gregários com organização social e hierarquias. O homem primitivo, segundo dados de arqueologia forense, poderia atingir os setenta ou mais anos de idade. Falta-nos contudo a “Graça” em sentido lato e literal para termos uma ideia de como se morreria há 30.000 anos e qual a esperança média de vida de então.

Pelo que se observa noutras espécies, igualmente gregárias, quando a morte não ocorre de forma violenta por um qualquer acidente ou doença, o animal velho ou com autonomia limitada quando pressente que o seu tempo se esgotou, afasta-se, isola-se e aguarda o descer do pano.

Jared Diamond, no seu livro O Terceiro Chimpanzé descreve nos povos primitivos da Papua-Nova Guiné (tribos sem contacto com o mundo exterior e por isso de elevado valor antropológico), descreve-nos, dizia, um ritual de morte do idoso, em que este quando perde a autonomia ou a utilidade para o grupo, se isola e “é auxiliado” por um membro da tribo que tem a função de lhe “facilitar” a passagem “mágica” para uma outra realidade (e fá-lo com uma paulada por detrás, na nuca).

Na nossa sociedade até há poucas décadas essa realidade não se colocava porque os que chegavam a essa dependência eram escassos. Mas com o “antropoceno bom”, o conhecimento médico, a melhoria de técnicas de diagnóstico e tratamento das doenças, na segunda metade do século XX, passou-se de uma situação em que se morria apesar, ou em resultado dos cuidados médicos, para uma outra em que estes interferem positivamente com a história natural das doenças. Deixámos de morrer maioritariamente em situações agudas, bruscas e de rápida resolução para morrermos lentamente com as cronicidades que anual e espaçadamente vamos acumulando. E há sempre a esperança do inevitável poder ser adiado por dias, semanas ou anos. Nunca se sabe de que lado da estatística estamos, mas é sempre melhor poder pensar nisso amanhã.

Com a eficácia dos cuidados médicos no curto prazo as pessoas passaram a reconhecê-los como algo de bom e positivo. Só que do reconhecimento passaram à esperança e daí à “veneração” foi um pequeno passo (diga-se muito estimulado por profissionais de saúde e políticos). As pessoas na doença e no pânico passaram a ver nos hospitais e nos seus profissionais o santuário onde o dia seguinte ou o batizado de um bisneto podia ser atingido. Acreditam, e o acto médico passou frequentemente a ser um ritual, ainda que por questões forenses, uma fé sujeita a consentimento informado.

E se delegamos a vida e nossa liberdade nos actores dos actos médicos, porque não delegar-lhes também poderes para nos “facilitarem a passagem mágica para uma outra realidade”?

É isso que está em discussão na Assembleia da República. A possibilidade de, como numa tribo primitiva, delegarmos nesses profissionais a nossa “desvida”.

Não tenho uma resposta óbvia de como a sociedade deve encarar a senescência e a morte. Não tenho resposta para essa questão, mas de uma coisa tenho a certeza, o que está a ser discutido na Assembleia da República, i.e., a organização dos serviços de eutanásia não é um avanço civilizacional, é um retrocesso aos primórdios da humanidade.

Preservo a vida em todas as formas. É-me impossível no outono, depois das primeiras chuvas, ver nas bermas das autoestradas aquele tapete verde a despontar e não ficar maravilhado com essa magia que é a vida. Não ficar estarrecido pela tenacidade com que aquelas minúsculas plantas brotam daquele breu inerte. É-me impossível não me sentir inebriado pela magia da vida e por me ter sido dado o privilégio de a ver e participar. Amo a vida em todas as formas. E porque esse sentimento está tão enraizado em mim tenho dificuldade em compreender quem assim não sente. Mas sei que os há, sei que há quem entenda, pense e principalmente, sinta que a vida deixou de fazer sentido por mais nada ter para lhe dar.

A lei portuguesa não pune quem assim pensa, sente e muito menos quem assim age. Pune sim, e bem, quem incentiva. Já punir quem auxilia (suicídio assistido), tenho muitas dúvidas.

Tenho posição pessoal mas sei que a não posso impor a ninguém. Nesta linha de pensamento nunca irei praticar qualquer forma de eutanásia, mas entendo que a mesma, enquanto variante do suicídio assistido não deva ser penalizada. Agora a eutanásia como “serviço” organizado a pelo Estado estou em completa oposição e não deleguei em ninguém esta minha posição. Não deleguei a minha posição em nenhum perito de banalidades nem em nenhum partido político. E muito menos nestes últimos quando no último acto eleitoral mais de 70% dos deputados foram eleitos em listas que, quanto a este assunto, declararam não ter posição, tendo declarando que davam liberdade de voto aos deputados que viessem a ser eleitos.

Como poderia eu saber o que o eleito pelo meu voto ia decidir? Como poderia o por mim elegido saber o que penso? Há algo aqui de muito errado, e, como é óbvio, num assunto em que as posições se afastam tanto da dicotomia das habituais posições políticas não pode haver outra solução senão devolver a questão ao povo! Não pode ser de outra forma.

Para além do logro que é os senhores deputados se acharem legitimados para decidirem, há ainda problemas que resultam da forma como o estão a fazer.

E a minha primeira objeção sobre a forma advém da impossibilidade de se legislar sobre o sofrimento insuportável, doença terminal, e todos os outros adjectivos com que a legislação pretende descrever (e obviamente não consegue), definir, regular o acto e descrevê-lo como actividade organizada.

Todos nós sabemos o que é o sofrimento, todos nós imaginamos o que pode ser um sofrimento insuportável. Mas é sempre um conhecimento subjectivo. Um conhecimento nosso. Para os outros não temos forma de o medir, só podemos acreditar. Sabemos, sim, que as pessoas aceitam a morte quando vêem que a vida mais nada tem para lhes dar. Sabemos isso, mas sabemos também que muitos dos que desistiram podiam ser Bernardos deste mundo. São pessoas que em sofrimento, entre vida e “desvida” fizeram uma opção.

É muito difícil descrever e muito mais é escrever e legislar sobre sentimentos. Todos sabemos o que é o amor, amizade, felicidade, compaixão, tristeza e sofrimento. Todos sabemos o que representam essas palavras, mas à exceção dos poetas é difícil senão impossível colocar esses sentimentos em texto e muito será dar-lhes uma formulação jurídica.

No documento final que vai para votação na próxima quarta-feira, o legislador, tendo dificuldade de definir os adjectivos que citou, esconde-se num emaranhado de regras que em última análise só a ele dão segurança. Pode assim legislar e ficar de consciência tranquila.

O documento em votação incorre ainda num outro erro e que é distinguir entre sofrimento físico e psíquico. Ora o sofrimento é apenas um, o do organismo. Se partir uma perna, não é a perna que sofre, é o organismo, é sempre do organismo, o todo e não de uma qualquer parte. O sofrimento resulta da representação no “Eu” do proto-Eu, Eu-nuclear e Eu-Autobiográfico descritos por António Damásio. Não há distinção entre sofrimento físico e psíquico. Ele é só um e resulta da construção de um Eu num dado momento, sendo por isso subjectivo, impossível de avaliar numa qualquer comissão, por mais doutos que sejam os seus membros e por mais diversa e abrangente que seja a sua área de diferenciação. E este sofrimento não pode ser confundido com o de quem assiste. Esse é sempre subjectivo quando não mal intencionado e a pender para a “schadenfreude”.

Sou favorável à despenalização da eutanásia e do suicídio assistido, mas sou claramente contra a organização na sociedade deste tipo de “serviço”. Esta minha oposição vem como tentei explicar das dificuldades de colocar em texto e na lei sentimentos que todos conhecemos e reconhecemos. Mas esta minha oposição resulta também da inquietação da complexidade da legislação em discussão. Esta é de tal forma intrincada que fico com a impressão de que a sua complexidade só pode resultar da insegurança do legislador. E o resultado final é, conhecendo eu como conheço o funcionamento do SNS, um nado-morto que seguramente vai acabar em “outsourcing”. Bela maneira de se morrer, em “outsourcing”, não acha? Vai ser negócio, não duvide!

PS – Utilizo o termo “desvida”, um termo por mim inventado, para descrever o resultado da eutanásia. Recuso-me a descrevê-la como morte. Tal como João Lobo Antunes, entendo que a morte deve ser “tribal”, um fim natural da vida a ser respeitado num ritual entre familiares e amigos mais próximos. É assim que vejo a morte, é assim que gostaria de assistir à minha.