Como teria sido o Natal, se Jesus fosse filho de outra Maria, casada com outro José?! Não é possível sabê-lo, mas pode-se adivinhar, tendo em conta o que tantas vezes acontece entre os maridos e as suas mulheres.

Imagine-se, pois, que o casal já está a chegar a Belém de Judá e que Maria, dada a proverbial mudez masculina, inicia a conversa:

– Espero que algum dos teus familiares nos receba, porque eu não estou para ter o bebé numa estalagem!

– Não garanto nada porque, desde que se fizeram as partilhas pela morte do avô Eleazar (Mt 1, 15), anda tudo zangado. A todos disse que vínhamos cá, para o nascimento de Jesus, e ninguém respondeu!

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– Muito orgulho em ser da “casa e família de David” (Lc 2, 4) e depois nem sequer se falam! A minha família talvez não tenha esses pergaminhos, mas, pelo menos, recebe os parentes!

– Já imaginava, porque é sempre a mesma coisa: a tua família é excelente em tudo e a minha nunca presta para nada! Mas, claro, tu és a imaculada Maria e eu sou apenas o carpinteiro José!

– Não foi isso que eu disse, mas a verdade é que estamos a chegar a Belém e ainda não nos apareceu nenhum desses tais membros da família real…

– Então não são?! Que culpa tenho eu em ser da “casa e família de David”?!

– Culpa talvez não tenhas, mas proveito, até agora, ainda não vi nenhum!

– Pois olha, não te esqueças que não fui eu que nos meti neste sarilho! Quem foi que disse que sim a um tal anjo que lhe apareceu? De certeza que eu não fui! Bem podias ter dito ao tal Gabriel que viesse falar comigo, que eu cá dizia-lhe que isto não é só mandar o filho de Deus ao mundo: há que garantir o seu sustento! Que jeito tem o Messias vir à terra e nem sequer ter um sítio para nascer!? Onde já se viu tal coisa?!

– Essa é boa! Que querias tu que eu dissesse ao anjo?! Que esperasse um bocadinho, enquanto eu ia à carpintaria saber se tu tinhas algum compromisso para a data do nascimento do Filho de Deus?! Francamente, José, tem mas é juízo nessa cabeça real …

– É sempre a mesma coisa! Ou seja, Vossa Excelência decide o que lhe apetece e depois o Zé que aguente! Se tivesse recebido eu o dito anjo, isto não ficava assim! Disso podes ter tu a certeza!

– Que coisa! Agora percebo por que Zacarias ficou mudo até ao nascimento de João Baptista (Lc 1, 20)! Sorte teve a minha prima Isabel (Lc 1, 36), que não teve que o aturar durante os nove meses da gravidez!

– Essa é outra! Então o dito Gabriel vai pedir a um casal de velhos, como Isabel e Zacarias (Lc 1, 18) que, com aquela idade, tenham um filho?! Eu sei que lá no Céu não têm calendário, até porque vivem na eternidade, mas uma maldade destas não se faz a ninguém!

– Pois estás muito enganado porque não foi maldade nenhuma, mas uma grande bênção de Deus! Acompanhei os últimos três meses da gravidez de Isabel e o filho deles nasceu lindamente (Lc 1, 57)!

– Pode ter corrido tudo muito bem, mas o miúdo não vai ter pais por muito tempo e disso podes ter tu a certeza! Admira-te se depois, sem pais nem irmãos, for viver para o deserto, vestir-se de peles de camelo e comer gafanhotos e mel silvestre (Mt 3, 4)!

– Qual é o mal?! Sempre houve homens e mulheres que escolheram esses lugares ermos, para aí se dedicarem à oração e à penitência …

– Pois, pois, boa desculpa para quem não quer trabalhar! Ficas a saber que não quero que Jesus se venha a dar com esse primo: há-de ser carpinteiro como eu!

– Nem penses! Com certeza que Deus não enviou o seu Filho ao mundo para fazer mesas e cadeiras! Melhor será que ele vá para o templo, como eu quando era pequena, e lá aprenda a Lei e os profetas.

– E desde quando é que a Lei e os profetas servem para alimentar uma família?! Ele tem é que trabalhar! Tens a mania de ser muito contemplativa, mas é porque eu sustento a família! Se não fosse o meu trabalho, gostaria de saber como é que tu e o teu filho se governavam! A não ser que estejas à espera de que ele converta a água em vinho (Jo 2, 1-11) e multiplique pães e peixes (Mc 6, 35-44)!

Entretanto, chegaram a Belém. José, que conduzia o burrinho pela arreata, dirigiu-se para a morada de um seu primo, que lhe disse que tinha a casa cheia e não os podia receber. Foi depois ter com outros seus “parentes e conhecidos” (Lc 2, 44), mas todos se recusaram a acolhê-los. Alguns até lhes reprovaram a imprudência de, estando Maria naquele estado, fazerem uma tão grande viagem. Dirigiram-se então à hospedaria, mas também lá não encontraram lugar (Lc 2, 7).

Maria, mais uma vez, impacientou-se:

– E agora, José?! Fizeste questão de me trazer “da Galileia, da cidade de Nazaré, à Judeia, à cidade de David, que se chama Belém” (Lc 2, 4) e resulta que não temos onde ficar! Lindo serviço! Melhor seria se tivéssemos ido para casa da minha prima Isabel. Mas, claro, como ela é da minha família, não quiseste! Eles certamente que nos recebiam, ao contrário destes teus parentes!

– Ainda agora lá estiveste três meses e já querias para lá voltar?! Mas tu casaste com o Zacarias ou comigo?!

– Claro que casei contigo, mas o Zacarias, que até é sacerdote, foi sempre muito atencioso e, durante aqueles três meses, nunca discutiu com a Isabel!

– Pudera, estava mudo!

– Olha quem fala: nos quatro Evangelhos não há uma única palavra tua, nem sequer um ‘pois’! Zacarias, mudo ou não, providenciou para que a Isabel nada faltasse quando nasceu o filho! E eu, que afinal casei com um carpinteiro, não tenho sequer um berço onde o reclinar! E, às tantas, ainda nasce nalguma estrebaria…

– Escusas de me acusar de termos vindo para cá, porque não foi iniciativa minha, mas por ordem de “um édito de César Augusto, prescrevendo o recenseamento de todo o mundo” (Lc 2, 1), registando-se cada família no lugar da sua origem e não da sua residência. Foi por isso que viemos para Belém de Judá, como sabes! Não tenho culpa que tenhas aceitado engravidar logo agora, quando tínhamos que fazer esta viagem!

– Ou seja, tanto cumpres as tradições da “casa e família de David” (Lc 2, 4), como és submisso ao César! Não me digas que agora, que estás tão romano, também vais adorar a estátua do imperador pagão, só porque o governador mandou?!

– Não sou romano, mas também não sou louco, para me opor às ordens do governador! Sabes muito bem que nunca adorei ídolos, nem a estátua de ninguém. Mas não podíamos deixar de vir a Belém, para que o teu filho seja registado aqui, como membro da “casa e família de David”, como aliás foi dito pelos profetas.

– Pois olha, a mim os profetas não são o que mais me preocupa agora. O que quero é que arranjes, quanto antes, um sítio qualquer, porque eu já não aguento mais os solavancos desta velha mula!

– Não é velha, nem mula, mas um jumentinho novo (Mt 21, 1-11). Ficamos então aqui, que há palha em abundância e até uma manjedoura (Lc 2, 7.12.16), que pode servir de caminha ao bebé.

– Rico berço de oiro! – troçou Maria, enquanto, maldizendo a sua sorte, descia do burro e se encaminhava penosamente para um monte de palha, onde se reclinou, exalando um suspiro de imensa tristeza e resmungando uma imperceptível lamúria.

…………

Foi exactamente assim que (não) foi o Natal de há 2018 anos. Mas poderia ter sido, se os protagonistas não fossem Nossa Senhora e São José. Este diálogo imaginário não é uma comédia sobre a sagrada família – honi soit qui mal y pense! – mas o drama das famílias desunidas e dos casais desavindos. A culpa dos seus desentendimentos não está no outro, nem na escassez de bens materiais, nem em terceiros, nem em outras circunstâncias, por penosas que sejam, mas na própria falta de caridade. Maria e José viveram em harmonia porque tudo fizeram para que, sobre as divergências que são normais em qualquer casal ou família, prevalecesse sempre o amor.

O Natal é a festa em que, tendo tudo corrido aparentemente tão mal, na verdade tudo aconteceu perfeitamente. “Deus é amor” (1Jo 4, 8.16), não um amor qualquer, mas aquela caridade que “tudo desculpa, tudo crê, tudo espera e tudo suporta” (1Cor 13, 7).

Santo Natal!