Há já alguns anos, ouvi ao Senhor Cardeal Dom Manuel Clemente, Patriarca de Lisboa, a melhor e menor homilia sobre o Natal: “Aconteceu!”. É sabido o rigor histórico do seu discurso, como também a sua profundidade doutrinal, sobretudo nestes tempos em que tantos, também na Igreja, questionam a historicidade de Jesus de Nazaré.

Foi o modernismo que estabeleceu a perniciosa distinção entre o Jesus da História e o Cristo da fé. Este último seria produto da imaginação dos crentes, enquanto o outro teria sido, afinal, um comum mortal. Em virtude deste critério que, a bem dizer, nada tem de científico, procurou-se descredibilizar a tradição cristã, pela sucessiva desmontagem de todos os factos sobrenaturais atribuídos a Jesus Cristo.

Não obstante esta tentativa de destruir o fundamento histórico do Cristianismo, foi possível estabelecer a autenticidade de muitas afirmações evangélicas relativas a Jesus de Nazaré, que é também, afinal, o Cristo da fé. Aliás, esta preocupação de rigor científico acompanha a religião cristã desde o seu início: na antítese das religiões mitológicas da antiguidade cristã, o Cristianismo surge, desde o princípio, como verdade, ou seja, conhecimento fundado na razão e na experiência e, por isso, credível.

São Lucas, por exemplo, inicia o seu Evangelho dizendo “ter investigado diligentemente tudo desde o princípio”, pois na altura eram já muitos os que “empreenderam pôr em ordem a narração das coisas que entre nós se cumpriram, como no-las referiram os que, desde o princípio, as viram e foram ministros da palavra”. Ou seja, o seu texto surge como resultado de uma criteriosa investigação, que teve em conta os principais relatos que, sobre a vida e obra de Jesus de Nazaré, circulavam na Terra Santa, poucos anos depois de terminada a sua vida terrena. A preocupação de Lucas, ao pôr por escrito o que conseguiu apurar sobre o Mestre, obedece a uma razão de rigor intelectual: “para que conheças a solidez dos ensinamentos que recebeste” (Lc 1, 1-4).

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

Se não restam dúvidas quanto ao nascimento de Cristo, o mesmo já não se pode dizer quanto ao ano, mês e dia em que aconteceu. Na altura, os reis festejavam o aniversário (Mt 14, 1-12), mas não assim as pessoas comuns e, por isso, compreende-se que os Evangelhos sejam omissos quanto à data de nascimento de Jesus de Nazaré.

Foi só no século VI, quando o Cristianismo tinha já uma relevante presença social, que um monge, chamado Dionísio, o Exíguo, se propôs determinar o ano do nascimento de Cristo. Segundo os cálculos que para o efeito elaborou, chegou à conclusão de que a concepção de Jesus teria acontecido no ano 753 da fundação de Roma, calendário então em voga em todo o império romano. Assim sendo, o ano 754 teria sido o primeiro da era cristã e, como tal, foi desde então paulatinamente usado em substituição do calendário estabelecido a partir da fundação de Roma, então em franco declínio.

Investigações posteriores provaram que Dionísio errou nos seus cálculos, porque é certo que o filho de Maria nasceu no tempo do Rei Herodes, o qual faleceu na primavera do ano 750 da fundação de Roma, depois da matança dos inocentes, ou seja, o assassinato das crianças nascidas em Belém de Judá até aos dois anos de idade, entre as quais supôs eliminar Jesus de Nazaré (Mt 2, 16-18). Portanto, este terá nascido uns dois anos antes da morte de Herodes, ou seja – valha o paradoxo! – seis anos antes de Cristo. Esta data concorda com o que diz São Lucas, que refere que Jesus nasceu quando decorria o recenseamento que César Augusto ordenou, “anterior ao que se realizou quando Quirino era governador da Síria” (Lc 2, 1-2). Assim sendo, é muito provável que Jesus tenha nascido seis anos antes da era cristã.

Quanto ao dia 25 de Dezembro, houve quem supusesse que os primeiros cristãos, na ignorância da data do nascimento de Cristo, instituíram o Natal no dia do sol invicto, festa estabelecida pelo Imperador Aureliano, no ano 274 d. C. Segundo Mário Righetti, o Natal de Nosso Senhor, verdadeiro ‘Sol de Justiça’ (Ml 3, 20) teria sido assimilado à festividade do deus falso, com o intuito de eliminá-la (M. Righetti, Historia de la Liturgia, 2ª ed., BAC, Madrid 1955, vol. I, pág. 689). Contudo, o Cardeal Joseph Ratzinger, futuro Bento XVI, considera que “hoje resultam insustentáveis as antigas teorias segundo as quais o dia 25 de Dezembro teria surgido em Roma, em contraposição ao mito de Mitra, ou também como reacção cristã ante o culto do sol invicto” (J. Ratzinger, El espíritu de la liturgia, Una introducción, Madrid 2001, pág. 130). Com efeito, os primeiros cristãos tiveram sempre o cuidado de não associar a sua fé a nenhuma superstição pagã e, portanto, não lhes ocorreria fazer coincidir a data do nascimento de Cristo com a festa do sol.

Então, em que dia e mês nasceu Jesus de Nazaré? São Lucas afirma que a anunciação do anjo a Maria ocorreu no sexto mês da gravidez de Isabel, a mãe do Baptista (Lc 1, 36). Quer isto dizer que o anúncio do nascimento de João aconteceu quinze meses antes do Natal, porque Jesus nasceu seis meses depois de seu primo, João Baptista. Ora o pai deste, Zacarias, soube que ia ter um filho quando se encontrava no templo, a exercer as funções sacerdotais: foi nessa altura que lhe apareceu o Anjo do Senhor, que lhe comunicou que, de sua mulher, ia ter um filho, João Baptista (Lc 1, 5-25).

Sabe-se que os sacerdotes se revezavam no serviço do Templo, por grupos, duas vezes ao ano. Zacarias pertencia ao oitavo turno, o de Abias (cf. Lc 1, 5). Segundo uma antiga tradição cristã, que remonta pelo menos ao século II” e que os pergaminhos do Mar Morto, ou do Qumran, confirmaram, “ele exerceu as suas funções sacerdotais durante a festividade judaica do Yom Kippur, o dia da expiação, que se celebrava em finais de Setembro. Somando a isso quinze meses, chegamos aos derradeiros dias de Dezembro, quando Nosso Senhor teria nascido. Entre os mais ferrenhos defensores dessa tese encontra-se São João Crisóstomo, Patriarca de Constantinopla, que se utiliza da mesma argumentação para assentar o Natal no dia 25, tal qual celebramos ainda hoje” (J. M. Gómez Carayol, Por que o Natal se celebra no dia 25 de dezembro?, Flashes de Fátima, Ano XXIV, nº 235, Dezembro 2022, pág. 18).

Para os crentes, é suficiente saber, com toda a certeza, que o Natal aconteceu há mais de dois mil anos. Mas, para quem procura a inteligência da fé, é reconfortante constatar que a ciência não só comprova o nascimento de Jesus de Nazaré, mas também que o mesmo aconteceu, com toda a probabilidade, no dia 25 de Dezembro. Como alguém disse, o principal inimigo da religião cristã não é a descrença, mas a ignorância. Santo Natal!