O Natal é uma festa cristã que, felizmente, ultrapassou as fronteiras da confessionalidade religiosa para se converter num símbolo e expressão da civilização ocidental. Por isso, na medida em que o nascimento de Jesus já não é uma festa exclusivamente católica, ou cristã, faz sentido que seja festejado em todas as famílias, no país inteiro, em toda a Europa e, até, em todos os continentes que se revêem de algum modo na sua mensagem de amor e de paz.

Querer negar a universalidade do Natal, por causa da sua natureza religiosa, é tão absurdo como recusar valor artístico universal ao Requiem de Mozart, ou à Pietá de Miguel Ângelo, só porque surgiram como expressões da fé cristã. Será que as peças de Shakespeare só dizem respeito aos cidadãos da Grã-Bretanha e, como tal, são ofensivas para os franceses?! Os romances do russo Dostoiévski deveriam ser proibidos nos Estados Unidos da América, dada a proverbial rivalidade entre estes dois países?! Ou as obras de Rafael serão, por acaso, exclusivas dos italianos e, assim sendo, não devem ser reproduzidas, por respeito aos suíços?! E que dizer da música de Beethoven e de Wagner?! Por ser germânica, deveria ser proibida em Israel?! Na verdade, todos os grandes expoentes da cultura, no âmbito do saber, da técnica, ou das artes, são património de toda a humanidade e não apenas da nação ou religião da sua procedência. E, por isso, o Natal, sendo na sua origem uma festa cristã, é de facto universal, porque é a mais bela expressão da cultura humanista.

Paganizar o Natal, substituindo o Menino Deus pelo Pai Natal, o presépio pela árvore, os Anjos pelas estrelas, a graça pela magia e a História bíblica pela lenda comercial, é pretender fazer do aniversário de alguém a festa de ninguém, com a desculpa de que a menção do aniversariante poderia ser ofensiva para todos os que não fazem anos. Ora, um aniversário só faz sentido na medida em que é a data do nascimento de alguém. É isso que significa essa festa, é isso que faz sentido: seria absurdo converter o aniversário num festejo que, para ser de todos, o não fosse de ninguém.

Imagine-se que a uma criança se diz que os seus anos não vão ser comemorados, para não ofender os irmãos. Ou que não se festejam os aniversários dos filhos, para não ofender os pais. Ou que nem estes serão tidos em conta, para não magoar os órfãos, ou os avós, tios e primos. Ou ainda que, pensando melhor, é preferível não comemorar nenhuma data significativa da família, ou do país, para não ferir as susceptibilidades das outras famílias, ou as de quem a não tem, ou dos restantes países…

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Graças a Deus, nasci numa família numerosa: sou o quarto de oito filhos e o primeiro de três gémeos. Por este motivo, em casa havia sempre muitos festejos. Quando era o aniversário de algum irmão ou irmã, eram para ele, ou para ela, os presentes, como eram também os seus amigos que eram convidados para a festa, sem que os outros irmãos se entristecessem por esse facto. Quando chegava o meu dia, a data era partilhada pelos três gémeos e nunca nos ocorreu pensar que seria preferível uma festa individual. Sabíamos que não tínhamos, apenas, um terço de festa, mas uma festa tripla!

Sim, o Natal é a festa de anos de Jesus Cristo. Não vale a pena fingir que é o dia da fraternidade universal, ou da família, ou da paz, ou da amizade. Há 364 dias para isso, mas o dia 25 de Dezembro é o dia de Jesus de Nazaré, o seu aniversário, o dia em que faz anos, aproximadamente tantos quantos os da nossa era cristã, que não em vão tomou o seu nascimento como princípio de um novo ciclo da História.

Falsificar o Natal, pela omissão do facto a que se deve a sua celebração, evitando os símbolos de carácter religioso, no intuito de converter essa data numa celebração banal, é uma mentira e uma hipocrisia. À força de descaracterizar o dia 25 de Dezembro, o Natal corre o risco de ficar reduzido à insignificância de uma data qualquer.

Precisamente porque o Natal é uma festa religiosa cristã, é uma celebração essencialmente humana. Se, num lugar público em que se respira um ar tenso, por uma recente altercação, uma jovem mãe entra com o seu filho recém-nascido ao colo, até os que antes discutiam se comovem. Ninguém pergunta à mulher qual é a sua religião, ideologia política ou estado civil. Ante um bebé recém-nascido, independentemente da sua etnia, nacionalidade ou religião, não há ser humano, digno deste nome, que não se enterneça. Talvez por isso, Deus fez todos os recém-nascidos tão amáveis, fez santíssima a sua excelsa Mãe e dotou as outras de uma tão grande dignidade, que não há pior insulto do que o que ofende a mulher de quem se nasceu. Natal é isto mesmo: a beleza comovedora de uma jovem mãe que dá à luz um filho que, nós cristãos, sabemos ser o Salvador do mundo (Jo 4, 42). Para não se alegrar com uma tal boa-nova, é preciso não ser humano, e só um néscio vê nela uma imaginária ofensa.

Não é inocente esta tentativa de cancelar os valores da nossa civilização, através da manipulação da memória histórica. Como também não é inofensiva a exploração da noção de laicismo, como condição obrigatória para uma sã convivência inter-religiosa e multicultural. A laicidade é respeito pela separação entre o Estado e as religiões, enquanto o laicismo, mais do que respeito pela diferença religiosa, é, de facto, a nova religião totalitária e estatal, que, como aconteceu na URSS comunista e no nacional-socialismo alemão, procura impor-se contra a liberdade de culto dos cidadãos. Para o efeito, diz-se que o laicismo é um princípio da Constituição quando, em lugar algum da lei fundamental, se afirma que o Estado deve ser laico, embora se diga – e bem! – que não deve ser confessional e que deve respeitar e defender a liberdade religiosa dos cidadãos, o que geralmente não acontece quando o aparelho do Estado é tomado por forças antirreligiosas e laicistas.

Na realidade, os que entendem as religiões como factor de desagregação social deveriam ver também no amor, ou no desporto, potenciais perigos para a sociedade pois, da mesma forma como houve guerras religiosas, não faltam as desavenças por razões amorosas ou desportivas …

Talvez nem todas as religiões sejam de paz e de amor, como é, decididamente, a cristã, mesmo que, por vezes, mais por via de excepção do que por regra, a mesma tenha sido usada para fins contrários aos seus princípios e bimilenar prática. Mas, que a religião cristã é a principal força de coesão da humanidade é patente, sobretudo para quem tenha presente as instituições de caridade e de acção social que a Igreja católica promove no mundo inteiro, sem comparação com nenhuma outra religião, organização internacional ou Estado.

Mesmo os cidadãos ateus ou agnósticos, que não têm outra devoção que não seja o seu laicismo, fazem bem em festejar o nascimento de Jesus, pois foi quem, num tempo em que o imperador romano era divinizado e, por isso, objecto de culto, estabeleceu o princípio de que deve ser dado a César o que é de César, e a Deus o que é de Deus (Mt 22, 21). Este é o fundamento da moderna laicidade, ou seja, da separação e mútuo respeito entre o Estado e a religião. Uma laicidade sem Cristo é como o patriotismo de um apátrida, ou a crendice de um ateu: um paradoxo ou, pior ainda, uma contradição.

Se é cristão, um Santo Natal! Se o não é, porque ainda não recebeu essa graça, festeje também o aniversário de Jesus de Nazaré que, para além de perfeito Deus e perfeito homem, é o fundador do humanismo e da civilização do amor. Para todos, um feliz Natal!