“Information is notknowledge”
Albert Einstein

O Dancing in the dark de Bruce Springsteen fazia justa companhia ao deambular meio dançado num corredor escuro do hospital, com os headphones nos ouvidos. Uma grávida já no fim da gestação definitivamente não anda, deambula. E tinha sido um corredor muito mais escuro de incerteza até há alguns minutos atrás. Esta grávida, também médica, pensava no insólito da situação em que se encontrava. Estava no hospital há várias horas, sabia que devia estar a promover a fisiologia do parto mantendo-se em movimento, facilitando o trabalho das contracções. Mas não o tinha feito, tinha ficado deitada, sossegadinha, mumificada, apreensiva (tudo o que não se recomenda) a olhar para as horas até ter o resultado mais aguardado da gravidez a seguir ao da tira com dois risquinhos cor-de-rosa uns meses antes.

O pai, médico do laboratório de Patologia Clínica daquele mesmo hospital e desde o início a trabalhar activamente com o novo coronavírus, aguardava expectante o resultado dos testes. Pesquisa de SARS-CoV-2 NEGATIVA para a mãe e para o pai. Agora sim estavam abertas as hostilidades. Agora podia deixar o filhote passar para a quinta-dimensão extra-uterina com as melhores condições possíveis, em equipa com o pai, alinhada com os profissionais de um hospital que se destacou no atendimento às grávidas no cenário actual e sem a preocupação perturbadora em pleno séc. XXI de que fosse separada da criança. Ou de que esta, estando de plena saúde, não tivesse acesso às boas práticas como a clampagem tardia do cordão umbilical garantindo reservas de ferro, ao contacto pele-a-pele, à amamentação e acima de tudo aos melhores braços possíveis – os dos pais.

A DGS finalmente a 19/05 recuperou do surto psicótico que foi a orientação de 30/03 para gravidez e parto, com indicações que eram uma aberração perante as recomendações já disponíveis e que infelizmente fizeram vítimas, algumas exibidas orgulhosamente nos media e em horário nobre. Em Medicina e em Bioética aprendemos que acima de tudo, primum non nocere, isto é, primeiro, não prejudicar. Mais intervenção médica não é sinónimo de melhor medicina. Mesmo perante uma infecção sobre a qual estamos a aprender, mesmo em cenários de recursos muito mais exaustos, Portugal comparativamente a outros países posicionou-se de forma orgulhosamente só e pouco baseada na evidência nos cuidados hospitalares à grávida e ao recém nascido. Compreende-se a apreensão dos serviços de há alguns meses atrás, apesar de a infecção nos ter dado o luxo de chegar cá já mais tardia e bem informada, com exemplos de melhor qualidade do que os poucos dados chineses.

A frase mítica “Quem só sabe de Medicina nem de Medicina sabe” transforma-se em “Quem só sabe de Covid-19 nem de Covid-19 sabe”. Em nome do vírus rebobinámos anos de boas práticas e de direitos protegidos legalmente por uma boa razão, sem uma necessária lógica no que diz respeito ao controlo de infecção. Como comprometendo a amamentação, uma mais valia em qualquer crise e sobretudo com o seu papel imunitário. Ou afastando os acompanhantes dos partos, quando são reconhecidos como significativos no apoio ao parto em si e perante profissionais de saúde que se vêem mais sobrecarregados. O acompanhante mais comum, o pai, tem sido descrito como uma caricatura até por profissionais de saúde, de forma pouco profissional. Um adereço a dar a mãozinha contaminada à mãe, um empecilho no trabalho de parto que tem fanicos e só dá trabalho ao dito trabalho. Um dador de gâmetas reduzido a Uber a deixar a grávida e as malas à porta do hospital e a vir recolher três dias depois já com um recém-nascido menos recém que não viu, não agarrou, não cheirou, nem ajudou a nascer. Se calhar até viu o bebé, por um ecrã, com a proximidade de mais uma reunião Zoom ou numa janelinha de um Whatsapp. Com mais sorte conheceu-o numa passagem por um corredor entre o bloco de partos e a enfermaria, como uma corrente de ar por uma janela aberta. Um curto anúncio no intervalo de um jogo de futebol crucial. Esta grávida da história tinha assistido a um destes momentos no hospital onde fora seguida. As portas cinzentas do elevador abriram-se para deixar passar a mãe na maca com a bebé num berço ao lado e o pai que as esperava no piso do internamento correu para as ver passar, numa aparição rápida, com uns comentários muito breves, como na curva de um rally. Já tinha visto apresentações do peixe para grelhar à mesa do restaurante mais longas.

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Observa-se então um país em que é preciso ter muita sorte e informação para ter igualdade de acesso à qualidade de cuidados e à protecção de direitos básicos previstos legalmente e recomendados pelas mais relevantes instituições sobretudo a nível internacional. Uma família hoje tem de ter muita sorte com onde reside – numa ilha onde não há casos o pai não pode assistir ao parto por exemplo. Ou vai correr para o privado como tantas fizeram e o privado rejubilou e agradeceu. Ou tem de ter sorte na hora em que a criança decide nascer para ver os testes prontos a tempo. Ou ter a sorte de uma indução ou cesariana programadas que não são a norma.

Encara-se um problema crónico cultural e paternalista para com a abordagem do parto, agudizado com as costas largas do desconhecimento e promoção da segurança dos envolvidos.

Mas o interessante é que o panorama nunca foi um “grávidas contra os hospitais” ao contrário do que se descreveu. Tudo o que protege os profissionais protege-nos a nós todos.

Isto é claríssimo num ambiente de grávidas que provavelmente estão já há bastante tempo mais isoladas e acompanhadas medicamente, portanto eventuais veículos de transmissão de baixo risco. O mais provável é quererem proteger-se da exposição aos sistemas de saúde. E estes têm recomendações de segurança para seguir e equipamentos que devem ser usados sistematicamente na presença ou não de uma pessoa de apoio no parto.

Já temos equipamentos de protecção — no início esta foi uma justificação razoável para impedir o acompanhante de estar presente para poupar material, agora já não se aplica. Já temos bastante conhecimento e reunião de experiências sobre a infecção e sobre o risco clínico nas diferentes populações. O que não falta são centenas de crianças a nascer todos os dias e na maior parte dos países de referência não se impediu a presença de uma pessoa de apoio no nascimento nem estas foram separadas das mães. Felizmente estaremos a ser injustos com muitos profissionais. Em vários serviços existem vozes dissonantes, a trabalhar com base em evidência e a tentar adaptar-se às circunstâncias,  não presos ao medo e à inércia, o que é a obrigação dos serviços de saúde, para proteger precisamente quem pretendem servir.

Este estado das coisas apresenta-se com a agravante da falta de transparência na comunicação com as instituições, como se fosse um capricho e um tabu saber o que é que os serviços estão a fazer para nos proteger, para se proteger e para ultrapassar as dificuldades encontradas. Cultivaram-se falaciosos sentimentos de culpa pela exigência de qualidade, como se fosse necessário escolher entre a segurança e o parto respeitado.

Com sorte, as perguntas receberam emails de respostas vagas e variadas. Alguns serviços referem agora que não existem condições arquitectónicas para ter acompanhantes ou que não há capacidade para testar. Perante o que sabemos sobre o vírus e sabendo que os profissionais têm de estar equipados de qualquer forma, é um critério inteligente em muitas instituições admitir um acompanhante assintomático, equipado e que cumpra as recomendações.

Tal como a qualquer doente que seja internado, é importante testar as grávidas. Mas é igualmente importante saber o porquê de testar (seja quem for) e que implicações terá esse resultado. Falando sempre da situação mais frequente que é uma mulher assintomática (e acompanhante também assintomático) que tem um resultado negativo para SARS-CoV-2 podemos afirmar que não é portadora do vírus? Não podemos deixar de lado a possibilidade de ser um falso negativo devido à qualidade da colheita ou que a carga viral fosse tão baixa na amostra que não foi detectada pela análise (há estudos que apontam para uma sensibilidade de 70% para esta técnica). Assim, a protecção dos profissionais deve estar sempre prevista. O resultado será importante para organização de internamentos, de eventuais procedimentos de maior risco ou idas ao bloco operatório e para fins científicos.

Qual é o racional para testar os acompanhantes assintomáticos? Tendo em conta a facilidade de propagação deste vírus, e na situação de coabitação dos intervenientes, poderíamos assumir o resultado através do resultado da mãe. Isto já é feito em hospitais com incidência de infecção superiores a qualquer hospital em Portugal e alcançando uma boa capacidade de resposta, exclusivamente para definir circuitos porque os direitos serão os mesmos — um exemplo é o Hospital Puerta de Hierro em Madrid.

Outra questão é, tendo sido detectado o vírus na mãe, qual é o motivo da separação física do recém nascido? Se for a possibilidade de contágio do bebé, não deveriam ser testados também os profissionais? Se o resultado do teste da mãe for negativo porque é que não se testam todos os que coabitam com a mãe, já que podem ser também portadores do vírus e as implicações do contágio ao bebé são as mesmas no primeiro dia de vida ou no terceiro?

Há diferentes testes diagnósticos para identificar o vírus SARS-CoV-2, diferindo de um modo geral na velocidade de obtenção de resultados (desde uma a seis horas, sem contar com a colheita, o transporte até ao laboratório, etc.), automatização e sensibilidade de detecção. Necessitam de técnicos e médicos especializados e com experiência. Mas uma característica têm todos em comum: são caros. Deveríamos então fazer um uso racional do stock de reagentes, dos recursos humanos e dos gastos nesta área. O vírus está para ficar e devemos pensar a largo prazo. Novamente podemos pôr os olhos em hospitais de países com mais casos do que o nosso e também já em alguns exemplos nacionais e testar apenas as grávidas – Apenas para organizar circuitos, garantindo os mesmos direitos. Assim seria possível diminuir a pressão para a indução de partos e a necessidade de pôr os casais a correr para o hospital à mínima contração para terem o teste pronto a tempo, contra as melhores recomendações e consumindo mais tempo e recursos.

Portanto a caravana Covid passa e os cães ladram, neste caso as famílias e alguns profissionais e organizações. Aguarda-se a luz justa neste cenário de dar à luz em Portugal em tempos de pandemia. Precisamos que a DGS e que as instituições assegurem igualdade no acesso à saúde em todas as suas dimensões. Temos grávidas durante semanas internadas e isoladas, pais que estão limitados ou impedidos de ver os filhos na neonatologia, mulheres que são submetidas a procedimentos difíceis como uma interrupção médica de gravidez sem apoio, que recebem más notícias em ecografias sozinhas, que sentem que não têm quem advogue por elas quando estão expostas e vulneráveis, e com medo que lhes tirem os filhos dos braços. Não é um episódio de Black Mirror, é Portugal.