Em setembro de 2006 foi subscrito entre o Governo e os dois maiores partidos políticos portugueses (o PS e o PSD) um acordo político-parlamentar que viria a ser conhecido como o “Pacto para a Justiça”, e que incidia, entre outras coisas, sobre o Código Penal e do Código de Processo Penal, o acesso à magistratura, o Estatuto dos Magistrados e do Ministério Público e a autonomia do Conselho Superior de Magistratura.

O pacto em causa viria a conduzir à reforma penal de 2007, uma das principais do regime jurídico português, e que contou com inúmeras alterações.

Em matéria de segredo de justiça, a regra passou a ser a da publicidade do processo, embora se prevendo a punição, a título de desobediência, da publicação por parte de meios da comunicação social de conversações ou comunicações intercetadas, além de se alargar o âmbito do crime de violação de segredo de justiça, de modo a responsabilizar não só quem, tendo contacto com o processo, divulgasse o seu contacto, mas também todos aqueles que, “independentemente de ter tomado contacto com o processo”, o fizessem (tudo numa lógica que, bem ou mal, tem vindo a ser contrariada pela jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, que insiste em privilegiar a liberdade de informação e imprensa).

Quanto a escutas telefónicas, passaram as mesmas a ter de limitar-se a suspeitos, arguidos, intermediários e vítimas, com a consequente destruição dos suportes “manifestamente estranhos ao processo” e atribuindo-se ainda ao Supremo Tribunal de Justiça a competência para autorizar escutas em que interviessem, nomeadamente, o Presidente da República ou o primeiro-ministro (situação que, mais tarde, no processo “Face Oculta”, viria a ganhar particular relevância, com várias críticas da defesa).

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A prisão preventiva passou a ser em regra aplicável a crimes puníveis com mais de cinco anos de prisão e tornou-se obrigatória a comunicação aos arguidos que fossem detidos para aplicação de medidas de coação dos elementos do processo que indiciassem os factos que lhes fossem imputados.

E, relativamente a meios de prova, alteraram-se as regras relativas às perícias médico legais e às recolhas de sangue ou outras células corporais foram alteradas e, quanto a testemunhas menores, vítimas de crimes de natureza sexual, passou a permitir-se que fossem ser ouvidos em fase de inquérito, com possibilidade de utilização dessas suas declarações mais tarde, em julgamento. Adicionalmente, passou também a ser possível a realização de perícias sobre a personalidade dessas mesmas testemunhas menores e, por outro lado, quando se procedesse ao reconhecimento de suspeitos por fotografias, tal só passou a valer como prova se se procedesse, depois, a um reconhecimento in loco.

Paralelamente, no Código Penal, muitas das alterações incidiram sobre os chamados crimes contra a liberdade e autodeterminação sexual, nomeadamente com a tipificação de vários novos ilícitos, como o abuso sexual de menores dependentes, atos sexuais com adolescentes, recurso à prostituição de menores, lenocínio de menores ou pornografia de menores, etc.

Com a curiosidade de que, mesmo tendo passado também a prever-se, pela primeira vez, a responsabilidade das pessoas coletivas, a mesma não incluiria estes novos crimes, designadamente o lenocínio (basicamente, o ato de promover atos de prostituição de outra pessoa, com fins lucrativos).

Após a entrada em vigor desta reforma penal de 2007, várias foram as vozes críticas, com especial enfoque para o livro intitulado “Bruscamente no Verão Passado, a reforma do Código de Processo Penal – observações e críticas sobre uma Lei que podia e devia ter sido diferente”, da autoria do Professor Doutor Manuel da Costa Andrade.

Nesse livro, além de lamentar a oportunidade perdida, comenta o autor que “não será difícil identificar soluções que claramente sinalizam a passagem, por exemplo, do caso Casa Pia”.

Com efeito, tal resulta não só das várias alterações respeitantes a crimes sexuais, mas também da memória que temos sobre as questões que, na altura, tanta controvérsia geraram, como o facto de um determinado jornal diário publicar transcrições de escutas telefónicas, ou até das críticas apontadas pela defesa à prova baseada em simples fotografias, entre outras coisas.

Quase que fica a sensação que o legislador, atento a tais preocupações e permanentemente exposto à agitação que se foi gerando, se sentiu compelido a remediá-las, uma a uma. Até chegou ao ponto de especificar que, quando a vítima menor atingisse a maioridade, poderia desistir da queixa em seis meses, assim terminando com o processo. Um pormenor relevantíssimo, sem qualquer dúvida!

No entanto, o principal problema de se realizar uma reforma da justiça motivada por casos concretos é que isso conduz a precipitações. Precipitações que, lamentavelmente, se podem acabar por relevar decisivas, ainda para mais quando por todos são conhecidos os atrasos da justiça. Se na pendência de um determinado processo se alterar a lei, não se ache que isso só produz efeitos para casos que venham a surgir no futuro.

Não foi assim por acaso que, diante de tanta controvérsia, se viria a criar um novo grupo de trabalho que culminou, três anos mais tarde, com a publicação de mais uma alteração ao Código de Processo Penal e que, como se escreveu na exposição de motivos da respetiva Proposta de Lei, visava “corrigir estrangulamentos evidenciados pela prática e que impediam a reforma de atingir a plenitude das suas virtualidades”.

Dito por outras palavras: no papel, as medidas poderiam até fazer sentido, mas na prática só geraram mais ineficiências e dúvidas.

Desde então, o legislador tem continuado a rever a lei, aqui e ali. Mas sempre que o faz, gera novas dificuldades. É que é preciso perceber que o ordenamento jurídico tem uma determinada lógica: não basta alterar cirurgicamente uma determinada norma e depois esperar que isso não tem implicações numa outra norma, que com ela se encontrava relacionada. Há todo um equilíbrio a respeitar, e é por isso que, depois, na praça pública, se levantam clamores a criticar juízes, procuradores do Ministério Público ou advogados, porque fizeram isto ou fizeram aquilo. No entanto, limitaram-se os mesmos a aplicar ou a servir-se da lei aplicável em cada momento. Alterar uma lei enquanto estão processos em curso tem disto.

Alguns exemplos:

Com pompa e circunstância, procedeu-se em 2010 à agravação dos prazos de prescrição dos crimes de corrupção, para 15 anos.

No entanto, esqueceu-se o legislador que, em 2008, tinha sido publicada uma lei relativa à responsabilidade penal por crimes de corrupção no comércio internacional e na atividade privada. E que passava a punir como crime, entre outras coisas, a corrupção no setor privado.

Assim, em 2015, lá vem mais uma alteração ao Código Penal, desta feita passando a incluir-se também os crimes previstos nessa lei ao referido prazo de 15 anos.

Consequência: a nova lei não pode aplicar-se retroativamente e, por isso, a processos relativos a crimes de corrupção no setor privado que tivessem sido praticados entre 2011 e 2015 (por exemplo) não seria aplicável o prazo alargado de 15 anos, ao contrário do que, aparentemente, era intenção do legislador.

Por seu turno, entre 2008 e 2015, agrava-se os limites máximos das penas aplicáveis a crimes de corrupção praticados por titulares de cargos políticos.

No entanto, esqueceu-se o legislador de prever a imputação de responsabilidades a pessoas coletivas, à semelhança do que já acontecia, desde 2007, no Código Penal. Sendo que lá acaba por surgir, finalmente em 2021, uma norma que preencheu essa lacuna.

Consequência: até à entrada em vigor desta nova lei, em 2021, nenhuma empresa poderia ser punida ao abrigo da lei relativa a crimes de responsabilidade dos titulares de cargos políticos, em Portugal (facto que, de resto, já teve conhecidamente repercussões em determinados processos mediáticos, ainda em curso).

Mais recentemente, temos ainda outro exemplo, como o foram as alterações feitas ao Código de Processo Penal de 2022, motivadas pela “Estratégia Nacional Anticorrupção” e que incidiram, entre outras coisas, sobre as regras relativas a impedimentos de juízes, por “participação anterior no processo”.

As limitações passaram a ser tantas que, rapidamente, se concluiu que, em comarcas de menor dimensão, o constrangimento seria enorme, sobretudo em face da falta e fragilidade de recursos que sempre existiu na justiça portuguesa.

E, obviamente, poucos meses depois, mais uma nova versão da lei seria publicada, corrigindo este lapso.

Desde que foi inicialmente publicado em 1987, o Código de Processo Penal já foi objeto de um total quarenta e nove alterações. O Código Penal, de 1995, conheceu um total de sessenta e três alterações.

Contudo, a julgar por tudo o que se tem discutido na praça pública, e sobretudo pelas inúmeras medidas listadas nos programas apresentados pelos vários partidos políticos nas últimas eleições, a justiça penal ainda não funcionará como devia, nem se revelará eficaz.

Talvez o problema não esteja na lei, mas na forma como a mesma é aplicada. Ou talvez o problema até seja mesmo o próprio legislador, que teima em focar-se na resolução de questões concretas suscitas por processos penais mediáticos, aprovando alterações que, tapando a cabeça, destapam inevitavelmente os pés.

Recentes iniciativas defendem a necessidade de reforma de justiça, centrando a discussão nas “recorrentes quebras do segredo de justiça”, na “proliferação de escutas telefónicas prolongadas”, nas “buscas domiciliárias injustificadas” e nas “detenções preventivas precipitadas e de duvidosa legalidade”. E criticam, ainda, os abusos do Ministério Público, que tem vindo progressivamente a exercer “um poder sem controlo”.

Sem dúvida que há muito a revisitar no processo penal e sem dúvida que os direitos constitucionalmente garantidos têm sempre de ser respeitados e preservados, de modo a prevenir detenções e acusações sem sentido.

Mas a circunstância de a forma como um determinado processo foi conduzido ter causado alarme social, num determinado período temporal, não pode ser o mote para que se inicie uma reforma penal, que se quer fria, ponderada e sistematicamente consistente.

Aliás, se os erros verificados em determinados processos devem justificar a necessidade de se aprimorar a lei, também os erros cometidos no próprio processo legislativo devem servir para alguma coisa.

A reforma da justiça penal é necessária, sim, mas não pode limitar-se a modificações cirúrgicas, ainda para mais motivadas por reações a quente. Como muito bem referiu recentemente o Presidente da República, “não pode ficar a sensação de que se faz uma reforma da justiça à medida da conveniência de cada momento (…). É desejável que haja nesse domínio, como noutros, um diálogo entre partidos, que não é um diálogo contra ninguém, mas a favor de melhor justiça; um diálogo que não seja a vingança de nada nem determinado por factos mais ou menos específicos. Não. Tem que ser determinado por questões que verdadeiramente têm que ser corrigidas porque não estão a funcionar bem”.

E ainda quanto a isto, um outro ponto: o principal problema da justiça penal não está em “fugas de informação”, em “violações do segredo de justiça” ou em “julgamentos populares”. Isso são questões a resolver, sim, mas não passam de meras consequências.

As verdadeiras causas são claras: a demora, a ineficiência e a falta de confiança nas instituições. Basta pensar em investigações que demoram há quase uma década, sem acusação. Quando isso sucede, é fácil que comece a alimentar-se a especulação e, com isso, eventuais violações de segredo de justiça.

Mas se se quer acabar com isso, a solução não é controlar o acesso à informação, já que se trata de algo que, numa democracia aberta, acaba mais tarde ou mais cedo por se revelar impossível.

A solução é, antes, perceber onde reside o problema: na tendência de recurso aos chamados “megaprocessos”, na falta de aposta e investimento recursos humanos e materiais (incluindo meios tecnológicos), na falta de digitalização dos processos e nos sucessivos e infindáveis pedidos de prorrogação dos inquéritos, mantendo suspensa a vida pessoal e profissional de “eternos suspeitos”, como que fazendo pairar sobre a sua cabeça uma constante espada de Dâmocles. Já para não dizer nas suas contas bancárias, que se mantêm congeladas sem que saia uma acusação.

E talvez uma outra boa solução seja ler ou voltar a ler o brilhante livro do Professor Doutor Manuel da Costa Andrade, a que acima me refiro, antes de se começar a fazer o que quer que seja.