“I want to believe”. “Eu quero acreditar” – era a célere frase no poster onde se via o que parecia um disco voador sobrevoando uma paisagem bem terrestre que o investigador Fox Mulder tinha na parede do gabinete no FBI, na série de culto “Ficheiros Secretos”. É curioso, porque a personagem era vista como fundamentalmente crédula, por contraste com o cepticismo científico da sua parceira Dana Scully. Mas o que o mantra definidor do seu carácter dizia era isto: não dizia “eu acredito”; dizia “eu quero acreditar”. E talvez não haja atitude mais humana nem mais racional, porque dizer “não acredito” é, em si mesmo e paradoxalmente, também um acto de fé: a convicção de que qualquer não existe ou não vai acontecer. Querer acreditar é outra coisa. Uma coisa ainda não derrotada, mas muito amarga.

Assim se sente o cronista, esta semana, e – acredita – muito mais gente por esse lindo planeta azul, eventualmente visitado aqui e ali por mulherzinhas e homenzinhos verdes, fora. Só que Fox Mulder queria acreditar que talvez houvesse extraterrestres e o cronista só quer acreditar em Kamala Harris.

O leitor conhece os factos: depois de muitos enganos, confusões, gaguejares, sinais exteriores múltiplos de que poderia já não ter a saúde física nem mental para o cargo e muita pressão, Joe Biden decidiu não se voltar a candidatar à Presidência dos Estados Unidos da América, sendo substituído na corrida pela até agora vice-Presidente Kamala Harris. Uma parte do mundo suspirou de alívio, a parte que não quer Trump de volta à Casa Branca, com as suas mentiras, o seu incentivo às armas, o seu desrespeito pelas instituições, a sua atitude hostil perante os imigrantes, o seu isolacionismo internacional e/ou potencial colaboracionismo com Putin. A parte que não compreendia como é que o Partido Democrata, perante Trump, “não arranjava melhor” do que Biden.

Bom, e aí está o busílis da questão: queremos acreditar que Kamala seja melhor do que Biden. Até por ser mulher. Até por ser de origens africana e asiática. Por ser a primeira mulher e, portanto, também a primeira mulher “de cor” a desempenhar o lugar de vice-Presidente daquela que ainda é a maior economia do mundo. Queremos acreditar que a América que ela representa, democrática, aberta ao mundo, multicultural, terra de oportunidades, seja capaz de derrotar a América fechada sobre si mesma de Trump, a América das armas e dos muros, a América que quer, em 2024, que as mulheres não tenham direito a abortar, nem em caso de violação ou incesto. Queremos que alguém, vindo dum mundo que temos por razoável, civilizado, que não tenha decidido, pura e simplesmente, abolir o valor da verdade e dos factos, volte a pôr juízo no “sonho americano” e, por influência dele, em muitos sonhos do mundo. Mas será que essa pessoa existe? E será que é Kamala Harris?

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

Nunca como hoje as nossas percepções pareceram condicionar-nos tanto. Trump é percepcionado pelos apoiantes como a epítome do self-made man, com o toque de Midas, que veio de fora do sistema para renovar a política americana; mesmo que tenha, essencialmente, dado continuidade a um negócio que já vinha do pai, acumulado múltiplas falências e não pudesse ser mais “do sistema”: um bilionário de Nova Iorque cheio de bons contactos e ligações na política e nos negócios. Harris é percepcionada como alguém que vai renovar o Partido Democrata, defender os direitos das mulheres e das minorias, mesmo que vá terminar o mandato como um dos vice-Presidentes com a taxa de aprovação mais baixa da história.

Vale a pena recapitular, sobretudo para quem acompanhe com menor atenção a política americana: Kamala Harris apareceu em Washington em 2017 como a estrela ascendente do Partido Democrata; desde então, não parou de acumular decepções. Em 2020, tentou concorrer à liderança do partido e, portanto, à nomeação para candidata democrata à Presidência, mas a campanha foi tão pouco empolgante que não chegou sequer às primárias. E enquanto vice-Presidente, começou a receber críticas nos primeiros meses e nunca mais parou. As duas pastas importantes que lhe foram passadas por Biden, imigração e reforma do sistema eleitoral, não conheceram qualquer avanço significativo; pelo contrário: acumularam retrocessos e derrotas perante os Republicanos. Em tudo o mais, foi acusada de produzir pouco e de forma errática, de autoritarismo por antigos colaboradores e de deslealdade por fontes ligadas à equipa de Biden; juntou gaffes – como quando foi à Guatemala e aconselhou os guatemaltecos, simplesmente, a “não virem” – e demissões na sua equipa. Foi acusada de aparecer pouco e falar ainda menos e de, quando falar, só dizer vacuidades e lugares-comuns. Até ao inesperado volte-face na liderança dos democratas, começava a questionar-se sobre se sequer continuaria a ser a pessoa certa para vice-Presidente ou se o Partido Democrata deveria procurar outro nome para colocar no ticket com Biden.

Para os apoiantes, tudo isto são apenas as provas cabais do racismo e do machismo que continuam a dominar a América, mas e se não forem? Muitas das críticas vieram de meios que, dificilmente, poderão ser acusados de iliberais, pouco democratas ou credíveis. Não estamos a falar da Fox nem da Truth Social, nem do gozo de Trump à forma como ela ri. Ao fim de 11 meses na função, um artigo da CNN titulava: “Exasperação e disfunção: por dentro do frustrante começo de Kamala Harris como vice-Presidente”. Em Janeiro seguinte, interrogava-se a BBC: “O primeiro ano de Kamala Harris: onde foi que as coisas correram mal?”. Já em Outubro do ano passado, o absolutamente insuspeito de republicanismo, machismo ou racismo New York Times publicava um extenso perfil, que incluía consultas de meses com familiares, amigos de infância, colegas, antigos e actuais colaboradores sob anonimato, que resumia no título e na abertura: “À Procura de Kamala Harris – Ao fim de quase três anos, a vice-Presidente ainda está a lutar para defender a sua posição – e sente que não deveria ter de o fazer”. Mais à frente, escrevia, de forma lapidar: “Harris tem sido uma política à procura de um momento, em vez de a líder que o define.”

Trump mente com quantos dentes tem – biológicos ou adquiridos –, foge ao fisco, rouba documentos classificados, tenta tomar o poder à força, é muito provavelmente amigo do arqui-inimigo dos Estados Unidos, a Rússia. Troça da Covid e vai parar ao hospital com Covid; apoia as armas e quase era vítima mortal delas; é contra a imigração sendo neto de imigrantes e marido de uma; engana a mulher, maltrata as mulheres, configura o caso mais acabado de pessoa que não sabe o que fazer ao cabelo quanto mais a um país – e, ainda assim, vai voltar a ganhar as eleições americanas ou, na pior das hipóteses, perdê-las por muito pouco.

Ele próprio já o disse: podia ir rua abaixo e dar um tiro aleatório a alguém, que ganharia na mesma. Porque isso já não se trata do que se faz nem do que acontece – talvez nunca tenha tratado –; trata-se daquilo em que se acredita. Metade da América acredita que isto está bem; se a outra metade acredita que a sua candidata é melhor pelos simples factos de ser mulher e de etnia não branca, que são exactamente as duas coisas em que não teve mérito algum na vida, o mundo que Trump representa já ganhou. Um mundo onde se é incapaz de ver além do óbvio, além das aparências, além das crenças de cada um. Porque identitarismo e trumpismo são apenas as duas faces da mesma moeda: opostas, complementares, impossíveis uma sem a outra.

Quero acreditar que alguém ainda é capaz de derrotar esse mundo e que podemos chegar a uma solução pacífica para a fractura que hoje divide a América e menos profundamente, mas de forma cada vez mais visível, todo o Ocidente. Mas suspeito que o E.T. do Mulder ainda aterra aí primeiro.