Por má fortuna, os quinhentos anos do que se convencionou ser o nascimento de Camões coincidiram com cinquenta anos do 25 de Abril. E o tempo, o modo e os fundos alocados pelo Estado às comemorações do Regime contrastaram flagrantemente com a incúria e a modéstia de fundos destinados à celebração do épico. E assim tinha de ser. O combatente do Império no Norte da África e na Índia, cantor exaltado e exaltante de feitos de guerra e de conquista, homem de sensibilidade, subtileza, erudição e experiência, capaz de dar voz ao contraditório e a todas vãs cobiças, capaz também de se deixar cativar por uma “cativa”, pode ser um homem para todos os tempos e estações… para todos, menos para este. Ou é-o pela ausência, pelo vazio, pela amordaçada mudez, pela surdez induzida e pela cegueira metafórica que a moeda comemorativa tão bem ilustra. Num tempo de maniqueísmo simplista, contrição oca e ignorância induzida, Camões só poderia ter lugar como saco de vento e “poeta cego”, ou mais precisamente, na designação oficial da moeda, como “efígie estilizada do poeta cego, com uma coroa de louros e uma gola típica do século XVI”. E depois havia ainda o colonialismo, o imperialismo, o “nacionalismo exacerbado”, a todos os títulos hostis a globalismos, federalismos e multiculturalismos generalistas.
Assim – e também pela qualidade formal e estilística e pela lucidez no juízo dos homens e dos tempos – era, desde logo, natural que Camões não despertasse grande entusiasmo entre a classe política dirigente e a intelectualidade desta Terceira República.
“Cessem do sábio Grego e do Troiano
As navegações grandes que fizeram,
Cale-se de Alexandre e de Trajano
A fama das vitórias que tiveram,
Que eu canto o peito ilustre Lusitano
A quem Neptuno e Marte obedeceram;
Cesse tudo o que a Musa antiga canta,
Que outro valor mais alto se alevanta.”
…Cale-se e cesse também Camões e o seu ilustre peito lusitano que outros valores (mais altos?) se alevantam. Que valores exactamente não sabemos; sabemos só que não são nem podem ser os do “peito ilustre lusitano”.
Temo que Vasco da Gama, cujos 500 anos da morte também se cumprem este ano, em 24 de Dezembro, véspera de Natal, não venha a conhecer melhor sorte. Até porque, além do delito de “nacionalismo exacerbado”, que partilha com Camões, praticou alguns dos crimes pelos quais devemos ao mundo penitência e reparação.
De regime em regime
Como este agora o queria fazer pela ausência amordaçada, também os anteriores regimes se foram sucessivamente apropriando de Camões.
Em 1880, o nascente partido republicano usou o terceiro centenário da sua morte de para criticar a Monarquia. A ideia era pegar na grandeza do poeta, da épica e do Portugal de Quinhentos para a atirar bem à cara do Portugal decadente do rotativismo regenerador.
Assim, na fórmula de Teófilo Braga, o homem da iniciativa, Camões simbolizava “as glórias e os desastres de Portugal”. Para Teófilo – e apesar do positivismo comteano da sua formação –, tratava-se de através da emoção e dos sentimentos populares suscitados pela memória gloriosa de Quinhentos, de que o Poeta era digno protagonista e celebrante, mobilizar a opinião pública e popular mostrando-lhe o fosso entre a grandeza do século das navegações e conquistas e “a apagada e vil tristeza” do país da Regeneração. O que se pretendia era esse contraste histórico entre o presente de então e o Portugal do Príncipe Perfeito e do Venturoso, contado e celebrado por Camões nos Lusíadas, a diferença entre essa “Idade de Ouro”, real ou mitificada, em que tínhamos sido pioneiros nos mares e oceanos e grandes na conquista das terras e o presente. Era com tudo isso que o intelectual republicano Teófilo Braga, através da promoção de grandes comemorações camonianas nacionais e populares, ao modo das festas cívicas da Revolução Francesa, queria espicaçar o povo.
Camões, nesse tempo, servia a uma esquerda nacional, republicana e patriota: era um poeta que celebrava o Portugal da Renascença, promotor de Modernidade, um poeta que, para o futuro primeiro presidente provisório da República jacobina, enfileirava com Virgílio e Dante, guias do entendimento e da cultura da Humanidade. Para Teófilo, Camões, tal como Leonardo e Miguel Ângelo, fazia a transição da Idade Média para a Renascença.
Na Geração de Setenta, quer Oliveira Martins, quer Antero de Quental foram críticos desse seu entusiasmo, por razões ideológicas e políticas: Oliveira Martins achava a versão de Teófilo de uma Renascença mais ou menos esclarecida, um mito; para ele, o cristianismo fundamentalista e identitário e o imperialismo político-militar não eram dissociáveis ao século de Quinhentos português; e Antero, no seu pessimismo, via em Camões e nos Lusíadas mais um epitáfio celebrativo do fim do ciclo da grandeza que uma proposição para memória e ressurreição nacionais. E Martins, em 1891, já depois da crise e humilhação do Ultimato, diria que o “entusiasmo de 1880” tinha “ardido como palha”.
Hoje, depois do enaltecimento do Estado Novo do Poeta e da épica, a Esquerda não está muito interessada nem em Camões, nem em lembrar as glórias do Século de Ouro. Ou tão pouco parece interessada – por ideologia, desinteresse ou falta de tempo ou ciência – nas suas complexidades e na crítica do Poeta à época em que escreve ou à gesta do passado. O governo socialista que, curiosamente, podia reclamar alguma ascendência da esquerda republicana e patriota que, há quase 150 anos, por interesse político de circunstância, mobilizou os lisboetas e os portugueses para o centenário da morte de Camões, pouco ou nada fez por este Quinto Centenário do Poeta. Olhou para o lado, ocupadíssimo a planear e financiar os 50 anos de Abril e a acolher a agenda educacional da extrema esquerda. Tanto que, na organização (ou ausência dela) das comemorações camonianas, não constava sequer o Ministério da Educação, agora justamente reposto como parceiro. Afinal, para quê implicar o Ministério da Educação nas comemorações, congestionada que já estava a Educação com tantas, tão determinantes e tão inclusivas agendas?
O melhor era ignorá-lo e festejar Abril. E depois, o Poeta, na sua vida irrequieta e perigosa, nos seus amores impossíveis, nas suas servidões e grandezas militares, nas suas “desajustadas” devoções a Deus, à Pátria e ao Rei, na sua consciência de contemporâneo e agente da original “exportação de Estado” pelos portugueses, não se coadunava com as esquerdas festivas das nostalgias anti-coloniais e muito menos com o simplismo das esquerdas do cancelamento e da vitimização à la carte. Tão pouco poderia “civilizar-se”, “pacificar-se” e “liberalizar-se” aquele a que a época forçara a outros modos.
Era coerente. Como dar volta ao Camões de Ceuta e da Índia, ao Camões dos Lusíadas, ao contador de uma história que, à luz dos valores em promoção e circulação, não passava de um marginal belicista, nacionalista, imperialista, colonialista, autor de uma narrativa épica que punha os guerreiros que fundaram e defenderam Portugal do lado certo da História?
Todo um outro programa
O facto de esses guerreiros, os reis e heróis da História e do poema camoniano, serem os defensores da pátria e da terra portuguesa – Afonso Henriques na primeira guerra da independência, o Mestre de Aviz e Nun’Álvares na segunda, D. Manuel na decisão de mandar Vasco da Gama à Índia, e os Almeidas, os Albuquerques e Castros que por lá andaram, lutaram e, alguns, morreram – parece ter-se tornado relativamente irrelevante. Bem como o facto de Camões não ser um servidor acéfalo dos poderes vigentes: deixa a contradição do Velho do Restelo por resolver (como observa Carlos Maria Bobone no seu recente Camões: Vida e Obra ) e está particularmente atento aos factores e riscos dos desvios do poder, ao abuso, à corrupção, à tirania, ao mau conselho que podem transformar o monarca em tirano e subverter o bom governo. Os exemplos podem ser do Estado da Índia, mas a crítica ao poder é clara.
Ao ler no Público a versão expurgada da fala do Primeiro-Ministro, Luís Montenegro, sobre comemorações de Camões, assustei-me, pensando que o Poeta, esquecido e marginalizado pelos seus antecessores, ia agora ser celebrado de modo “democrático e inclusivo”, conforme o jornal dava a entender. Felizmente fui ler as declarações de Montenegro na íntegra. Afinal, o que o primeiro-ministro tinha dito era que não queria celebrar Camões “de um modo passadista ou saudosista”, mas que também não queria “modernizá-lo em termos anacrónicos falsificadores da verdade histórica…”. O que é todo um outro programa.
Ainda que o tempo não esteja de feição para grandes poetas ou heróis, nas suas contradições e errâncias, na profunda verdade da sua vida e da sua obra, Camões é Portugal ou também é Portugal. E é um grande intérprete do colectivo, do mundo e da comunidade, do universo e da pátria que nos fala do grande mundo a que Portugal se abriu e abriu. Merece ser celebrado – e lido.