Caras e Caros,
Em 2015, votei na coligação Portugal à Frente. No Continente, houve mais 1.993.920 eleitores que fizeram o mesmo. Nos Açores e na Madeira, sem coligação, 81.054 portugueses votaram também no PSD. Fruto das regras de Hondt e da aritmética oportunamente negociada com o CDS-PP, tal resultou na vossa eleição: 89 deputados e deputadas, o maior Grupo Parlamentar da presente Legislatura. Em paralelo, o CDS-PP elegeu 18 deputados.
O que esperávamos, em 2015? Que fossem Maioria. O que vos pedíamos? Que continuassem a apoiar o Governo de Portugal. Sabemos que as contas não chegaram lá e que, em função disso, o Governo é outro e outras são as forças políticas que o suportam.
Mas nem por isso 2015 deixou de ser o referencial político do vosso actual mandato. Em 2015, sufragámos um projecto e um caminho. E entregámos-vos a responsabilidade de os afirmar e prosseguir. Quis a história que tudo se baralhasse e que a exigência do que se vos confiou viesse a ser, afinal, bem maior. Mas a vida faz-se também de evoluções insuspeitadas e é então, sobretudo então, que a congruência e a solidez dos compromissos enfrentam os seus testes mais decisivos.
Vem tudo isto a propósito da votação iminente de quatro projectos-lei relativos à legalização da eutanásia. Matéria difícil, que recomenda – ou melhor, que impõe – uma reflexão informada, séria e ponderada. E, para tanto, uma discussão aprofundada. Sem pressas impostas pelos calendários de agendas que nada têm a ver com a gravidade e o melindre das múltiplas questões aqui implicadas.
A respeito da eutanásia, tudo deve interpelar-nos. Falamos da vida e da morte. E falamos também de conceitos tão imensamente complexos e arriscados quanto a dignidade da vida e da morte. Falamos da antecipação não natural da morte, por via de decisão necessariamente heterónoma, isto é, por decisão de outro ou outros que não aquele que vai morrer. Falamos, pois, de uma decisão médica relativa à antecipação da morte de doentes. Falamos da possibilidade de pessoas matarem pessoas, de médicos matarem doentes. Falamos da legitimidade de tudo isto. Sabemos exactamente em que condições? Concordámos, para lá de qualquer dúvida, no fundamento em que assentamos a viabilidade de tal opção? Revemo-nos, de forma clara, transparente e partilhada, nos limites impostos à evolução preconizada? Temos consciência plena da profunda revisão de valores que uma eventual legalização da eutanásia inevitavelmente encerrará? E é nessa avassaladora mudança que colectivamente nos encontramos? A sociedade, enquanto tal, sindicou o que estava em causa e as suas múltiplas decorrências de modo atento e inequívoco? As perguntas poderiam somar-se, inesgotáveis como são. Nesta exacta linha, porque – antes de tudo – a discussão legislativa em curso levanta-nos questões morais. As mais basilares questões morais, acerca do que é a vida, do que é ser pessoa, do que é o nosso domínio sobre a vida e os meios para a fazer ou não perdurar, do que é a morte, a morte de cada um, a morte do outro, a morte legítima, o livre arbítrio e o seu condicionamento social.
Depois, há o Direito. E as inúmeras interrogações jurídicas que se colocam. A Constituição da República Portuguesa não consagra a inviolabilidade da vida humana? E não o faz de modo absoluto, radical, fundador? Aprendemos que, ao conferir-lhe uma natureza e uma dimensão sistémica singulares, o legislador constituinte assumiu a tutela da vida humana como o alfa e o ómega da sociedade que queremos ser, da sociedade em que nos queremos rever. E aprendemos também que é por isso mesmo que, hoje, entre nós, juridicamente falando, a vida humana não é objecto de um qualquer direito na disponibilidade do respectivo titular. Distingue-se, nessa sua essência, da propriedade, da integridade física, da honra ou do trabalho, para dar apenas quatro exemplos bem diversos. A vida humana é protegida a se, como bem jurídico primordial, referência central do sistema, ponto de partida e ponto de chegada de todas os demais direitos, garantias, liberdades e regimes juridicamente referenciados. E, sendo assim também na perspectiva do Direito, as interrogações presentes são incontáveis, devendo ser sindicadas sem atropelos ditados por urgências extra-jurídicas. Fruto da história, os sistemas jurídicos são realidades sólidas que se sedimentam através de uma espessura axiológica e sistemática que nos impõe a todos a necessidade de dar passos pensados e medidos. Será a legalização da eutanásia, em qualquer das suas modalidades, eutanásia activa ou suicídio assistido, uma opção constitucional? Que relação jurídica se estabelece entre aquele que quer morrer e aquele que o matará ou o ajudará a suicidar-se? Como se define e baliza o regime jurídico do pedido da morte? Como se regula e afere juridicamente o sofrimento insuportável, a doença fatal, a lesão definitiva, a dependência absoluta? Como se estabelece, em termos jurídicos, um critério objectivo de avaliação da dignidade da vida humana, de modo a distinguir entre vidas dignas e vidas indignas?
E, caras e caros, finalmente, a Política. Para lá de toda a complexidade moral e jurídica, o vosso embaraço mais imediato é político. Em 2015, nenhum dos partidos responsáveis pela apresentação dos quatro projectos-lei com votação marcada para o próximo dia 29 de Maio apresentou a sufrágio qualquer proposta tendente à legalização da eutanásia e do suicídio assistido. PS, BE e PEV não tinham, nos respectivos programas, uma linha que sequer roçasse o tema. Só o PAN, embora sem antecipar nenhum tipo de iniciativa legislativa concreta, prometia promover uma discussão alargada e participada acerca das questões aqui implicadas. Portanto, e em suma, PS, BE, PEV e PAN avançam com as suas iniciativas legislativas sem que a falta de mandato eleitoral lhes imponha qualquer tipo de reserva ou rebuço, justificados apenas pela sanha fracturante e socialmente disruptiva que têm vindo a ensaiar. A legitimidade formal e jurídica é o que lhes basta para tentarem creditar mais uma vitória na sua campanha em prol da instauração de uma nova ordem – fátua, dispersiva e pseudo-moderna. Tudo bastante lamentável, mas não sei sequer se tal incomodará os eleitores de PS, BE, PEV e PAN.
Preocupam-me muitíssimo mais as pesadas dúvidas que sobram para os eleitores do PSD. Desde logo, as dúvidas que eu própria não consegui ainda ultrapassar. Tendo por certos, apenas, os votos a favor dos quatro partidos que subscrevem os quatro projectos-lei e o voto contra do CDS, tudo fica a depender do que fizerem PCP e PSD. Ora, sobre o PCP, nada sei ou posso, embora reconheça que tendem a ser bastante mais consistentes e sérios nestas matérias do que os seus habituais companheiros de jornada pós-2015. Mas é o PSD que verdadeiramente me inquieta. Porque foi no PSD que votei e porque é o PSD que me representa. Fomos mais de dois milhões de Portugueses a votar na coligação Portugal à Frente e no PSD, elegendo 107 deputados, a quem não demos qualquer tipo de mandato relativamente à legalização da eutanásia. Deste significativo universo, 18 deputadas e deputados do CDS-PP já anunciaram a sua intenção de votar contra. E nós? E o PSD?
Pensaram, caras Deputadas e caros Deputados, na natureza do que está em causa? Terão liberdade de voto e a votação será nominal, mas como entendem – como entende cada um e cada uma – o voto que vos cabe? Votam pela vossa consciência pessoal, individual, como se respondessem a um qualquer inquérito de opinião, que vos respeitasse apenas subjectivamente? Ou votam na suposição de interpretarem o sentido do voto que os vossos eleitores vos terão confiado? No primeiro caso, acham legítimo contribuírem – e contribuírem tão decisivamente, como a aritmética parlamentar evidencia de modo incontornável – para mudar radicalmente o equilíbrio de valores e regimes que estruturam a nossa sociedade, base daquilo em que nos revemos como comunidade, a partir apenas das vossas convicções pessoais? E, no segundo, como interpretam tal sentido de voto se os eleitores não tiveram qualquer hipótese de se pronunciar, expressa ou tacitamente, sobre matéria que esteve totalmente arredada do debate eleitoral?! Não vejo como possam sair do dilema sem enfrentar a questão política da falta de mandato. Falta de mandato absoluta perante a qual – estando em causa uma mudança profunda das traves-mestras em que assenta o nosso Direito e, com ele, o nosso acordo colectivo sobre a sociedade que somos e queremos ser – não dispõem de legitimidade política para alterar o statu quo. Falta de mandato que, portanto, vos obriga a votar contra, já que essa é a única forma de impedir activamente – como se impõe num contexto de falta de poderes – a mudança da lei vigente. Um voto a favor ou mesmo a simples abstenção – na medida em que não recusam a alteração legislativa – consubstanciariam sempre, do ponto de vista político, uma expressão de vontade ultra vires, ou seja, para além dos poderes conferidos. Seriam, assim, votos politicamente ilegítimos.
O apelo que vos faço é, pois, claro. No quadro da liberdade de voto conferida, pensem muito bem – um a um, uma a uma –, no que vão fazer, no que podem e devem fazer, no que os vossos eleitores esperam que façam. Não facilitem, não aligeirem, não se deixem ficar indiferentes à essência e ao peso do que terão de votar. O tema impõe, como poucos, seriedade, rigor, detenção, profundidade e respeito. As questões da vida e da morte são imensamente complexas e exigentes, devolvem-nos a uma humildade que importa assumir. Mas, por força dessa dificuldade, há linhas vermelhas que é prudente sinalizar e preservar. Antes de mais nada, porque consubstanciam limites que nos defendem e distinguem como cultura e como civilização.
A legalização da eutanásia continua a ser uma excepção no mundo ocidental e na Europa. A discussão vai-se fazendo, mas a generalidade dos países tem resistido a abrir a porta a uma evolução que se sabe ser muitíssimo perigosa. O que se passa na Bélgica, na Holanda ou na Suíça é eloquente. Negócios de morte florescentes e um plano inclinado que tem permitido uma paulatina sucessão de passos indefensáveis – para lá de tudo o que se antecipava ou prometia no início, hoje, crianças, deficientes e doentes mentais são mortos em nome de uma eugenia que ofende valores civilizacionais básicos, o número de mortes decididas por médicos independentemente da existência de pedido cresce sem parar, os pedidos presumidos aumentam a um ritmo inquietante. Quebrada a barreira que nos impede de matar outrem, não há mais limites seguros. De degrau em degrau, tudo se vai admitindo, ora a pretexto da compaixão ora em homenagem ao primado da autonomia individual. É uma porta que, uma vez aberta, não volta a fechar-se.
Ao legalizar a eutanásia e o suicídio assistido, uma sociedade dá um sinal inequívoco acerca do tipo de vidas que valoriza ou desvaloriza – um sinal terrível e substancialmente totalitário. Pelo contrário, recusando dar tal passo, o sinal é polissémico: por um lado, reafirma o primado moral, jurídico e político da vida humana, através da rejeição da instituição oficial de um novo procedimento em que médicos decidam sobre a morte de doentes, em que médicos matem doentes ou os ajudem a matar-se, de modo a promover por essa via o papel social de valores como a compaixão, a solidariedade, o respeito pela dignidade intrínseca de todas as pessoas e de todas as vidas, assim como a reforçar o sentido do investimento em cuidados paliativos e a primazia da atenção e do alívio devidos a quem sofre; por outro lado, numa implicação relevante, reconhece a dificuldade dos temas relativos ao fim da vida e o imperativo de conceder à respectiva discussão tempo, profundidade, estudo, serenidade e condições para conclusões seguras.
Caras Deputadas e caros Deputados, não vão atrás de modas ou de um inquestionado ar do tempo. Resistam a este endoutrinamento, que ameaça séculos de sedimentação de pensamento e valores que são marca identitária da nossa cultura e da nossa civilização.
Esta é a agenda do BE, não é a nossa. Também não era a do PS, como nunca foi a do PCP. Nossa, continua a não ser.
A Finlândia acabou de recusar uma proposta de lei neste sentido – por uma maioria expressiva, somando 128 votos contra e apenas 60 a favor. Portugal pode e deve fazer o mesmo, com total clareza, duas semanas depois. Confio que o PSD queira ser parte determinante desse desfecho.
Sofia Galvão é advogada e foi Vice-Presidente do PSD (2008-2010, 2016-2018)