Foram precisos dez anos e 12 minutos. Dez anos desde o colapso do Banco Espírito Santo até ao início do julgamento; 12 minutos para Ricardo Salgado percorrer as poucas dezenas de metros do carro até à porta do tribunal. 12 minutos que foram um estranho compacto da tragicomédia humana.
De um lado, o outrora todo-poderoso banqueiro, transformado pela doença de Alzheimer numa sombra dele mesmo. Magro, frágil, marcas que não lhe conhecíamos no rosto, um fato vazio do homem de ar seguro e, porque não dizê-lo, soberbo, que, durante décadas, marcou a vida pública nacional, caminhando agora com dificuldade, apoiado pela mulher e um dos advogados, entre a turba de jornalistas, populares, forças de segurança e chapéus-de-chuva, num dia que poucos cenógrafos teriam escolhido pintar de outra forma: plúmbeo, soturno, sem esperança. Do outro, alguns dos que perderam as poupanças de uma vida nas labirínticas operações do Banco Espírito Santos. Uns gritando de viva-voz, outros mais discretos em nome de pais e avós que já não têm condições físicas de se deslocar ali, e até um grupo de figurantes contratados, mascarados de preto, ao redor de uma carrinha funerária, em representação dos 104 lesados que já morreram sem chegar a ver um cêntimo do dinheiro que um dia confiaram ao banco de Ricardo Salgado.
Uma hora depois, tudo estaria já terminado. Tudo, isto é, o primeiro capítulo de um volume que se adivinha longo, muito longo, de uma saga que já demorou tempo de mais (lá dentro, juízes e advogados trabalham com um processo que tem oito terabytes de informação). O principal arguido do processo seria dispensado depois de identificado pela juíza e de responder a meia dúzia de perguntas simples que culminariam com um eloquente “não sei” à questão que, entretanto, se tornara magna: preferia que o julgamento fosse feito na sua presença ou sem ele? “Este já não é Ricardo Salgado”, sentenciaria, algures naquela manhã, Adriano Squilacce, um dos seus advogados.
Cá fora, a defesa falou em “página negra” para a justiça portuguesa, “vergonha mundial” e de um “mundo civilizado” em que nunca seria exigido que se apresentasse em tribunal a uma pessoa naquela condição precária – talvez só “na Rússia”. E zurziu “uma justiça que humilha”, uma justiça que “viola a sua própria dignidade” quando “viola a dignidade de qualquer pessoa”.
Mas não era bem apenas a dispensa física no julgamento que a defesa pedia; era a dispensa do próprio julgamento – a sua suspensão ou extinção. Tal como antes já alegou, num recurso, que a prisão iria acelerar a morte do arguido. Que uma sessão anterior tivera já “efeitos muitos negativos” na sua saúde. Que acusou, noutros processos envolvendo Ricardo Salgado – EDP, Marquês – o Ministério Público de “falta de humanismo”, não pelos factos que imputava ao cliente, mas pelo simples facto de os imputar, encontrando-se ele naquele débil estado de saúde.
Assistimos em nossas casas a estes 12 minutos ou ao resumo que deles passam os noticiários e sentimos que é a toda a tragédia humana que cabe neles, recortada pelo cruel poder das imagens. Quanto se pode subir e cair, como tudo cedo ou tarde passa. A finitude, a mortalidade, a curiosidade humana, mas também a exploração, mas também a exibição, mas também a empatia. O impulso para a justiça, o impulso para a vingança, o impulso para o perdão. Quantos sentirão um prazer perverso ao ver um homem outrora chamado “Dono Disto Tudo” resumido agora àquele estado de vulnerabilidade? Quantos dele se compadecerão pelas mesmíssimas razões: alguém antes distante como uma esfinge, ali exposto agora exactamente como o mais humilde de nós? (O próprio Jorge Novo, sempre uma das vozes mais audíveis dos lesados, aproxima-se de Ricardo Salgado e parece falar-lhe com alguma compreensão pelo seu estado. E Salgado parece querer responder-lhe, antes de o advogado lhe segredar qualquer coisa ao ouvido. Novo despede-se desejando-lhe “saúde”, e é impossível que não nos comovamos ao menos um pouco com a humanidade daquele momento.)
Mas nem o escárnio nem a compaixão deveriam ser chamados a este caso.
Uma coisa é o homem idoso que sofre de um grave problema de saúde; outra alguém que liderou um grupo empresarial que deixou milhares de pessoas sem as suas poupanças e que somou, até ao momento, prejuízos no valor de quase 12 mil milhões de euros para o Estado, mais do que qualquer outro caso ou instituição de que nos consigamos lembrar. É por isso que deve ser julgado, no tribunal ou à distância. É para minimizar o mais possível esses prejuízos que o tribunal deve trabalhar. Nada mais.
Então, porquê aqueles 12 penosos minutos de exibição pública? A quem aproveitam? Se poderia ter entrado discretamente pela garagem, como fez à saída? “É um espaço público”, diz aos jornalistas Francisco Proença de Carvalho, o outro advogado do antigo banqueiro. “O que é que muda? Muda alguma coisa?”, solta, perante a insistência da imprensa.
Vem, inadvertidamente, à memória a lendária declaração com que Salgado começou o seu depoimento na comissão parlamentar de inquérito, dez anos atrás: “O leopardo quando morre deixa a sua pele. E um homem quando morre deixa a sua reputação.”
Que pensaria ele destes 12 minutos, se ainda fosse Ricardo Salgado?