Nunca pensei algum dia, como crente católico, poder vir a dizer que sou anticlerical. Sempre me ensinaram na minha fé que, pela história, os maus da fita eram os anticlericais. Desde os “jacobinos” aos “mata-frades”, estes eram os “anticlericais”. Desde a repressão dos religiosos do tempo da revolução francesa, do Marquês de Pombal e da extinção das ordens religiosas, ao tempo da República. Em parte, eram de facto os maus da fita, pois reprimiram o clero de forma violenta, intolerante e injusta, resta saber se existiam razões legítimas para a animosidade. Não sei, não investiguei. Sei que Lutero tinha algumas razões para a rutura que fez, mesmo que como católico não concorde com a forma como lidou com a decadência do clero. A Igreja é como a família. Amamo-la e por isso nos chateamos mais quando nos desgosta, mas não a abandonamos. No que pudermos, tentamos mudá-la de dentro, começando por nós mesmos.

Hoje em dia o termo ganhou outro significado com o Papa Francisco, o qual diz que o “clericalismo é um cancro”. Sei que muito antes, vinha já do Concílio Vaticano II esta urgência da Igreja ir ao encontro do mundo, dar outro papel aos leigos e não ficar na sua autorreferencialidade. Passados mais de 50 anos sobre Concílio, o Papa Francisco faz o diagnóstico: há ainda um grande caminho por trilhar para erradicar esta doença.

O que é o clericalismo? É a concentração do clero no seu poder e não no serviço aos outros. Este comportamento vem de clérigos como de leigos. Como diz o Papa, devemos trocar isto pela “cultura do encontro” e pelo “testemunho”. Este fenómeno nunca esteve tão patente na crise dos abusos sexuais, em que a causa é o próprio clericalismo, segundo o Papa. Tristemente e depois de vários países com centenas, milhares de casos e figuras altas da Igreja acusadas e condenadas, os negacionistas ainda existem. Sejam eles noutros países, mas no nosso também. A recente investigação dos abusos em Portugal, pelo Observador, até bastante equilibrada, diga-se, também levou com as críticas dos habituais negacionistas. “Não é bem assim”, “os outros também fazem”. Há ainda os tradicionalistas que referem que o problema é a homossexualidade dentro da Igreja. Pergunto aos mesmos, há dados concretos – provas – dessa afirmação? Uma coisa é falar por alto, outra concretizar com números. Não vi e posso não estar informado, mas não creio que: 1) a maioria dos padres seja homossexual; 2) que os que sejam, sejam pedófilos. Há uma diferença entre ser homossexual e pedófilo e, segundo um dos porta vozes das vítimas, a maioria das mesmas são mulheres. Além disso, basta pensarmos em algo simples: a maioria das pessoas são heterossexuais, sendo uma minoria homossexual. Isso não é diferente no clero, com certeza. As pessoas esquecem-se de outro desequilíbrio sexual, a heterossexualidade também pode ser descontrolada e pouco madura.

O caso mais abstruso do negacionismo que encontrei recentemente foi agora aquando da redução ao laicado do Cardeal McCarrick. Um padre português muito ativo nas redes sociais, de nome João Vila-Chã, no Facebook afirmar que o Cardeal “não é pedófilo; está acusado de abusos, sexuais e de poder, mas não por ser pedófilo”. O Cardeal abusou de um menor, mas não é pedófilo, segundo este Padre. É esta a mensagem de um clérigo, até bastante seguido por gente muito ilustre. São estes os burocratas da religião. A seguir, até uma jornalista de um conhecido portal católico o apoiou dizendo esta preciosidade, “há que distinguir abusos, de pedofilia”.

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Mais: um padre amigo, uma pessoa que até prezo como boa pessoa, disse-me que se forem abusos em contexto de família, “vai-se denunciar um familiar?”. Se vejo isto em pessoas que considero idóneas, quanto mais em outros? É por isto que estamos como estamos. Não nos enganemos, ainda não mudámos de tempo: negamos, encobrimos, menorizamos, ignoramos, o desejo desesperado de proteger e “defender” a Igreja sobrepõe-se a qualquer noção de verdade e bom senso, já para não falar de que não protege o principal: as vítimas. Esta insensibilidade é a “indiferença”, segundo o Papa Francisco, que grassa nos nossos tempos, a doença do nosso século, a qual também chegou à Igreja.

O Pe. Manuel Barbosa, secretário da Conferência Episcopal, reagiu às investigações do Observador desta forma: “foram só” (não sei quantos casos), “Os outros o que estão a fazer?”, “Vai dar ao mesmo”(ir ao encontro ou esperar pelos testemunhos dos abusos). Senhor Pe., não vai dar ao mesmo esperar pelo testemunho ou ir ao encontro. Estas pessoas estão fragilizadas, é preciso ouvir mas tomar a iniciativa, como diz o Papa Francisco. Não consta que o samaritano estivesse à espera que o que foi assaltado por ladrões se levantasse e fosse ter com ele. Não interessa estar sempre a dizer que devemos ser uma “Igreja em saída” e “ir ao encontro” e depois ficar sentado no palácio com medo de se sujar e manchar a imagem da Igreja. Ela está, sim, manchada “do sangue do cordeiro”, D’ Ele, mas também do sangue de inocentes que carregam esta cruz.

Gestor, co-fundador do site datescatolicos.org