Recuemos um século: o ano é 1920. Numa altura em que o socialismo já exerce sobre a manada das mentes bien pensants o poderoso encanto do seu embuste, Ludwig von Mises publica, sob o título «Die Wirtschaftsrechnung im sozialistischen Gemeinwesen» (Archiv für Sozialwissenschaft und Sozialpolitik 47), o artigo ignorado mais importante da história económica (e, talvez, política) do século XX: «O cálculo económico na comunidade socialista» foi, de um só golpe, o diagnóstico, a autópsia e a terapêutica do socialismo. Estava lá tudo o que seria necessário para que o século XX tivesse poupado centenas de milhões de seres humanos à longa procissão de morte, miséria e opressão que tão zelosamente lhes foi imposta pelo ciclópico devaneio socialista.
E tudo começa, como sempre, com uma ideia. Temos pouca ou nenhuma noção da importância das ideias nas nossas vidas. Vivemos como se as nossas ideias fossem como as peças de roupa que temos penduradas nas cruzetas do armário: passivas e mudas, inofensivas e inanimadas, neutrais e disponíveis, sempre prontas a vestir e a despir conforme gosto e ocasião. O problema é que uma ideia não é um par de calças: são as ideias que nos vestem, não o inverso. Não há nada mais perigoso para a vida do que uma má ideia. E não há nada mais perigoso para uma má ideia do que uma boa ideia. A demonstração do primeiro perigo é o socialismo no século XX. A demonstração do segundo é a lição esquecida de Mises. Aproximamo-nos do primeiro perigo sempre que esquecemos o segundo.
Devíamos estar este ano a celebrar 100 anos desde que Mises demonstrou que a abolição da instituição da propriedade privada, ambicionada pelo socialismo através da propriedade (ou, melhor dito, apropriação) colectiva dos meios de produção, corresponde, no fundo, à «abolição da economia racional»: depois da abolição da propriedade privada, não vem a sociedade sem classes: vem a sociedade sem comida, sem liberdade e sem dignidade. Bem podem os planeadores socialistas – espécie de «Reis-Filósofos» e «Reis-Economistas» das platónicas repúblicas soviéticas – tentar, segundo Yuri N. Maltsev, fixar administrativamente 22 milhões de preços e 460.000 salários e mais de 90 milhões de quotas laborais para mais de 100 milhões de funcionários públicos: o caos, a escassez e a tirania serão sempre o resultado inevitável. Como a história fez questão de demonstrar numa copiosidade de formas tragicómicas, o socialismo é mais competente a pendurar cadelas em órbita do que salsichas no talho.
Devíamos estar este ano a celebrar 100 anos desde que Mises demonstrou que, num regime socialista, o cálculo económico é simplesmente impossível – problema ao qual Mises dedicará mais tarde, com outro fôlego, uma parte significativa do seu monumental Socialism: An Economic and Sociological Analysis (Parte II, capítulo 7 e «Appendix») e, ainda mais tarde, os capítulos 11-13 e 26 do seu não menos monumental tratado, Human Action – e que esta impossibilidade é uma decorrência necessária da ausência de um sistema absolutamente indispensável ao cálculo económico: o livre mercado. Porquê o livre mercado? Porque «Onde não há um livre mercado, não há mecanismo de preços; e sem um mecanismo de preços, é impossível haver cálculo económico».
O socialismo está assim condenado à impossibilidade do cálculo económico e, como tal, dos meios de fazer escolhas racionais entre as várias alternativas à disposição: é, portanto, impossível determinar o custo e o resultado de uma operação económica ou tornar o resultado do cálculo o teste da operação. Palavra a Mises: «O paradoxo do “planeamento” é não poder planear, devido à ausência de cálculo económico. Aquilo a que se chama economia planificada não é economia nenhuma. É apenas um sistema de tactear no escuro. Não permite uma escolha racional de meios para a melhor consecução possível dos fins desejados. Aquilo a que se chama de planeamento consciente é precisamente a eliminação da acção com propósito consciente.» Tradução: o socialismo não funciona e, por mais ensaios e diligências que sejam consagrados ao seu êxito, milhões morrerão à fome.
Ora, uma vez que a realidade possui aquele irritante (e, quem sabe?, reaccionário) duplo atributo de ser comungante de imperativos lógicos, aos quais não pode desobedecer, e indiferente a alucinações planificadas, as quais não pode satisfazer, o socialismo, por mais enérgicas e insistentes que fossem as tentativas quinquenais, embirrou em partilhar da opinião, não de Marx, mas de Mises – e, senão nas «cloud-cuckoo lands of their fancy», jamais funcionou. Na verdade, o artigo de Mises não é um artigo académico: é uma câmara de tortura. E a embaraçosa sessão de suplício intelectual a que a ideia de socialismo foi ali submetida deveria ter sido suficiente para que esta findasse os seus dias votada ao esquecimento perpétuo na sarjeta das teorias económicas onde Mises a deixou a estertorar. Desde 1920 que está categoricamente demonstrado que o socialismo é uma ilusão que camufla uma intrujice que camufla uma impossibilidade. O socialismo é o terraplanismo das teorias económicas: «o socialismo», repitamo-lo, «é a abolição da economia racional». Os 100 anos que se seguiram foram a (infelizmente macabra) demonstratio propositionum primarum do artigo de Mises.
E, no entanto, exactamente um século depois do artigo definitivo de Mises, e após um século de abundante e sinistra evidência empírica prestando testemunho da validade do seu veredicto, o socialismo continua a exercer o seu ardiloso feitiço: um fantasma que não cessa de rondar a Europa e o mundo. Há 100 anos, Mises desvendou, por via da pura dedução lógica, o que o século XX viria a descobrir (e suportar) da pior forma e que o século XXI parece ter já esquecido: que o socialismo só pode gerar absurdos económicos, como a Grande Campanha dos Pardais ou os Planos Quinquenais, catástrofes humanas, como o Holodomor ou o Gulag, e monstros políticos, como Estaline ou Mao.
Porque, na verdade, há apenas duas formas de olhar para o socialismo: a de Marx e a de Mises. Para Marx, o socialismo é inevitável. Para Mises, o socialismo é impossível. Para mal dos nossos pecados, ambos têm razão. Faz este ano 100 anos que o socialismo foi definitivamente refutado. Mas não, infelizmente, abandonado. Só ultrapassaremos Marx recuando um século inteiro a Mises, até àquele artigo simultaneamente seminal e terminal. Há 172 anos, Marx anunciou que há um fantasma a assombrar a Europa. Há 100 anos, Mises mostrou-nos que não há fantasmas. Matar fantasmas é das coisas mais dolorosas que uma criança aprende a fazer. E, no entanto, das mais necessárias. Chama-se crescer.
* Convidado da Oficina da Liberdade