Desde há muitos meses que temos vindo a assistir ao folhetim da ida de Mário Centeno, ministro das Finanças, para governador do Banco de Portugal, logo que em Julho expire o mandato do actual, Carlos Costa. Não sabemos se Centeno se terá comprometido com essa transferência, mas, perante o seu silêncio, é manifesto que é uma possibilidade que pondera, deseja ou até exige. Se assim não fosse, tinha a estrita obrigação de publicamente a desmentir.

Em defesa dessa hipótese, tem-se afirmado que não existe conflito de interesses, que há precedentes históricos e que Centeno seria competente para o lugar, merecendo-o pelos serviços prestados ao país. Nenhum dos argumentos me convence. Pelo contrário, há várias e boas razões para não o admitir. Entendo mesmo que essa alternativa consubstanciaria uma grave entorse à transparência num procedimento de nomeação de um alto cargo público e uma afronta aos valores da democracia.

Primeira razão. Desde 1998, o Banco de Portugal passou a fazer parte do Sistema Europeu de Bancos Centrais, não podendo o governador e demais administradores solicitar ou receber instruções dos órgãos de soberania nacionais ou de quaisquer outras instituições, o que foi estabelecido de forma a assegurar a sua independência. A “transferência” do ministro das Finanças para governador do Banco de Portugal não viola a lei, particularmente a que regula as incompatibilidades e impedimentos dos titulares de cargos políticos e altos cargos públicos, uma vez que o Banco de Portugal não é uma empresa privada. Contudo, parece-me evidente que a “passagem” não observaria as regras de um bom governo. Atenta a independência do Banco de Portugal em face do Ministério das Finanças – podendo entre essas duas entidades ter existido divergências e até disputas (como aconteceu frequentemente entre Centeno e Carlos Costa) –, o novo governador poderia vir a confrontar-se com situações em que o organismo que passaria a gerir se manifestara de forma contrária à sua posição enquanto ministro das Finanças. Não é salutar ignorar essa potencial conflitualidade, a qual deve ser prevenida através de uma dilação razoável entre a titularidade desses cargos, se forem ocupados pela mesma pessoa.

Segunda razão. Não há qualquer precedente histórico atendível, não só porque o enquadramento legal dos exemplos apontados é completamente distinto, como nenhum se equivale àquilo que agora se prevê possa acontecer. Pinto Barbosa cessou funções como ministro das Finanças em 14/06/1965, só vindo a ser nomeado governador no ano seguinte. De resto, estávamos no Estado Novo e o Banco de Portugal nem era uma entidade pública, uma vez que só veio a ser nacionalizado em 1974. Silva Lopes foi governador do Banco de Portugal entre 1975 e 1980. Pelo meio, teve uma efémera participação de 21 dias no III Governo Constitucional, presidido por Nobre da Costa, no qual acabou por não ter qualquer actividade relevante, porque o respectivo programa não passou na Assembleia de República, tendo voltado para o Banco de Portugal de onde saíra. Miguel Beleza cessou funções como ministro das Finanças em 31/10/1991 e veio a ser governador do Banco de Portugal em 1992, no âmbito, aliás, de uma decisão tomada pelo XII Governo Constitucional, quando ele fizera parte do XI Governo Constitucional. Nenhuma destas ocorrências tem a ver com o caso de um ministro das Finanças que quer escolher o lugar para onde vai a seguir. Não consta que Pinto Barbosa, Silva Lopes ou Miguel Beleza se tenham “andado a fazer” ao cargo, nem isso tinha a ver com a personalidade de qualquer um deles.

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Terceira razão. Mário Centeno é certamente um economista competente, é um bom ministro das Finanças e tem idoneidade moral. Mas tem dado provas de lhe faltar a qualidade do respeito pela transparência das instituições que, ademais nos tempos difíceis que se avizinham, se exige para o perfil do próximo governador. Foi o que ele revelou quando andou a “brincar ao gato e ao rato” com um indigitado presidente da Caixa Geral de Depósitos, a quem prometeu – ou deixou que passasse a ideia que tinha prometido – a dispensa da declaração de rendimentos no Tribunal Constitucional, o que nunca podia ter feito. Para além do “erro de percepção mútua” que Centeno atabalhoadamente veio a invocar, o certo é que ele teve oportunidade, durante muitas semanas, de esclarecer publicamente essa situação e nunca o fez. Mais tarde, a política das cativações também não foi um método de transparência na governação. Pode ter sido útil para conquistar mais umas décimas no campeonato do déficit público, mas não só teve nefastas consequências ao nível do investimento público, como sobretudo transmitiu a ideia de que os orçamentos são “para inglês ver”, porque depois lá está o ministro das Finanças para cortar a seu bel-prazer. Não desresponsabilizo o governo por esse erro, mas não é disso que neste momento estou a tratar.

Quarta razão. As sequelas da resolução do BES, efectuada em 2014, vão continuar a marcar a economia portuguesa, a nossa justiça e a vida do Banco de Portugal. Não me parece aconselhável que venha a ser nomeado governador quem acha que tal resolução, decretada pela instituição que vai dirigir, “foi a mais desastrosa alguma vez feita na Europa”, quando ainda estão pendentes procedimentos judiciais no valor de muitas centenas de milhões de euros que a põem em causa. Como é que quem pensa assim pode adequadamente servir o Banco de Portugal? De resto, apesar de estar na moda criticar, com particular veemência, a resolução do BES de 2014, a verdade é que, à luz das condições e da legislação vigente, ainda não vi quem tenha vindo explicar, de forma consistente, qual seria a alternativa. Pode não ter sido a fórmula ideal, mas serviu para evitar a liquidação do banco – que teria consequências muito mais danosas – e pôs finalmente termo a um império fraudulento que se tinha estabelecido à conta do BES (nesse particular, sempre saudei a coragem de Passos Coelho e do próprio Carlos Costa). Acresce que a venda do Novo Banco – contra a qual sempre fui, porque entendo que não se vende bem sob pressão – foi condicionada pelos prazos estabelecidos pela Comissão Europeia, com quem Mário Centeno podia ter negociado em termos de garantir – o que julgo que teria sido possível, atendendo ao esforço que Portugal estava a fazer – a prorrogação do prazo para a venda do banco, a efectuar apenas quando este tivesse a robustez suficiente para poder dispensar os elevadíssimos montantes das injecções monetárias de que agora nos queixamos.

Quinta razão. A questão que mais me impressiona é que se ache razoável que o ministro das Finanças, que supostamente não quer continuar no governo, possa escolher ir para governador do Banco de Portugal, como se tratasse de uma compensação ou de um prémio. Em democracia, o mínimo de decoro e de respeito pelas instituições e pelo povo não devia permitir que este tema fosse sequer assim equacionado. Se Centeno quer sair do Governo, que saia, mas não tem o direito a colocar qualquer exigência quanto a um lugar de destino, porque isso ofenderia os valores da própria democracia. Não podemos aceitar que um governante possa escolher o cargo para onde vai quando deixar de exercer funções (ou sequer participar nessa escolha). Em Portugal, vivemos há tempo demais com um sistema eivado de compadrio, nepotismo, expedientes de “portas giratórias” e promíscuas troca de favores. Não podemos protestar contra esse estado de coisas e aceitar que, ao mais alto nível do Estado, um ministro se coloque na situação em que Mário Centeno se tem colocado. E muito menos, claro, que os órgãos de soberania cedam a essa pressão.