A forma como decorreu a votação na Assembleia da República das matérias relativas ao IRS e ao fim das portagens nas denominadas SCUTS aponta para que a oposição portuguesa, muito por força do Partido Socialista e do Chega, esteja a inventar uma nova modalidade de sistema de Governo. Um modelo que poderá ser designado como um semiparlamentarismo.

Como é sabido, a Ciência Política contempla apenas três sistemas de Governo – presidencialismo, semipresidencialismo e parlamentarismo – que, no entanto, devem ser colocados no plural, pois, por exemplo, o semipresidencialismo francês é incrementado, enquanto o semipresidencialismo português, desde a revisão constitucional de 1982, é mitigado. Por isso, Macron dispõe de mais competências do que Marcelo Rebelo de Sousa.

Essa revisão foi marcante não apenas por reduzir a carga ideológica da Constituição e representar o fim da intervenção política das Forças Armadas, designadamente do Conselho da Revolução, alterações sem as quais Portugal não teria entrado na Comunidade Económica Europeia, mas também porque alterou a relação entre os órgãos de soberania. Assim, o Governo, apesar de continuar a ser responsável perante o Presidente da República e a Assembleia da República, passou a só responder politicamente perante esta.

Aliás, sempre que o Governo conta com maioria absoluta na Assembleia da República, até se pode permitir desautorizar o veto político presidencial, recorrendo à passagem do Decreto a Lei. Uma situação que o Professor Adriano Moreira designava como presidencialismo do Primeiro-Ministro.

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Voltando à conjuntura presente, a circunstância de o Governo dispor de uma maioria relativa muito frágil, aliada ao «não é não» de Luís Montenegro, não augurava uma legislatura tranquila. O diálogo e a negociação teriam de ser constantes. A atuação, tanto do Governo como da Assembleia, teria de ser marcada pelo interesse nacional e pautada pela cultura democrática.

O problema é que, em Portugal, a cultura democrática é um dos valores mais baixos do Índice de Democracia e pouco tem a ver com o processo eleitoral e pluralismo e com as liberdades civis, parâmetros que nos colocam ao nível das democracias completas ou perfeitas. Daí que o Governo incorpore medidas da oposição no Programa de Governo sem antes dialogar com esses partidos. Uma forma de mostrar que é ao Governo que está cometida a decisão na escolha. Por isso, a oposição ou recusa qualquer medida do Governo, mesmo antes de a conhecer, ou finge estar disponível para negociar, mas apenas viabiliza as propostas próprias.

A votação relativa ao IRS e às SCUTS encarregou-se de provar a nova realidade da política portuguesa. Estamos perante aquilo que parece ser uma espécie de semiparlamentarismo. Assim, a Assembleia da República, órgão a que está cometido o poder legislativo, rejeita as propostas do Governo e aprova propostas próprias alternativas, condicionando, na prática, o poder executivo. Dito de outra forma: os dois maiores partidos da oposição na Assembleia da República exigem que o Governo governe não de acordo com o programa que decorre grosso modo das promessas eleitorais, mas obedecendo às ideias da oposição. Mesmo que, como é o caso, a oposição não disponha de um projeto único, mas apenas de uma agenda pontual e interesseiramente comum.

Mesmo sabendo que cada órgão do poder tem algumas competências próprias ou exclusivas e outras partilhadas, não parece constitucionalmente aceitável que a oposição, com receio das consequências penalizadoras que costumam recair sobre quem provoca a queda do Governo, aceite mantê-lo em funções, mas à custa da mudança do sistema de Governo.

Face ao exposto, percebe-se a razão de um Secretário de Estado afirmar publicamente que o Governo pode não durar muito. Para mal do interesse nacional, a paciência, ao contrário da hipocrisia, tem limites.