Admita-se a possibilidade formal, nunca de substância, de separar a ação política (visível e imediata) do pensamento doutrinário(invisível, profundo, de longo prazo). É o preço a pagar para compreendermos a frágil condição humana, o equivalente a sermos forçados a separar o inseparável corpo (incluindo o social) da mente (incluindo a coletiva).
Embora em eleições de natureza distinta (legislativas e presidenciais), entre 2019 e 2021 o Chega passou de 67.826 votos (1,29%) para 496.653 (11,9%). É o fruto do reconhecimento social de apenas uma parte do Chega, a da ação política, prática, falada, da imagem. O bastante para ir quebrando as barreiras de um regime político moldado, desde 1974, para interditar a direita, regime no qual a esquerda detém o monopólio do controlo das instituições que tutelam a cabeça dos portugueses (em rigor, o pensamento social), como o ensino (da universidade ao básico), a comunicação social ou os meios intelectuais e artísticos.
É necessário regressar ao tempo da Inquisição para um controlo institucional centralizado e hierárquico das mentes tão socialmente abrangente e poderoso. Daí que a outra parte do Chega, a do pensamento doutrinário, continue socialmente invisível ou, pior, distorcida. Se o partido pertence inequivocamente a um campo político, a direita, tal seria impossível sem o suporte de um pensamento doutrinário. De forma manifesta ou latente, consolidada ou ainda a confluir no Chega, este jamais teria o percurso eleitoral conhecido em pouco mais de um ano se o corpo (ou lado prático) do projeto não possuísse uma mente (ou lado do pensamento) que lhe desse sentido. Estou no embrionário Gabinete de Estudos do Chega desde outubro onde se busca o equilíbrio político do projeto entre a prática e o pensamento, ambição que segue a um ritmo bem superior ao que pensava. Começou pela revisão do programa e numa proposta de reforma setorial estratégica, trabalho em fase de acerto final, e num tempo muito condicionado pelos efeitos da pandemia chinesa.
O lado do pensamento, doutrinário ou escrito sustentará e promoverá ainda mais o crescimento eleitoral do Chega, porém é o que mais enfrenta uma ostracização feroz que o impede de se exprimir em voz própria junto da grande opinião pública. A razão é simples: é neste campo que Chega aponta diretamente à cabeça do regime, que é ao mesmo tempo o seu coração, a sua ordem moral e intelectual falidas.
No campo-chave do pensamento social, qualquer ação reformista em Portugal acaba abortada à nascença nas malhas censórias do regime que controlam os espaços institucionais e públicos de debate de ideias: universidades, comunicação social, meios intelectuais e artísticos, todos eles hegemonicamente policiados pela esquerda. Acontece que não existe, no Chega, qualquer ambição de expulsar quem quer que seja desses espaços, apenas assinalar que a sua propriedade exclusiva pela esquerda esterilizou a sociedade portuguesa envelhecendo-a nos mais variados campos: etário, mental, identitário, cultural, social, económico, político.
Um mínimo respeito pela liberdade de pensar fará admitir que existe um muro mental português, a variante nacional do Muro de Berlim. Após o derrube físico deste, em 1989, a esquerda ocidental reinventou-o em modo de controlo repressivo do pensamento social.
Se alguma evidência fosse necessária, ela foi demasiado ostensiva na dualidade de critérios no tratamento, pela comunicação social, da campanha eleitoral para as presidenciais. Ainda assim, pela primeira vez desde 1974 os donos do pensamento oficial do regime falharam clamorosamente no controlo da ação de André Ventura e do Chega. Numa sociedade tradicionalmente conservadora como a portuguesa, tal brecha no muro é suficiente para consolidar, entre os portugueses, a intuição do pensamento social (ou de senso comum) ser distinto do pensamento dos que mandam, isto é, cresceu como nunca a intuição da sociedade portuguesa estar sitiada do lado de cá do muro mental, o lado equivalente ao território da Europa de Leste controlado pelos soviéticos durante a Guerra Fria (1945-1991), mas que também existe um lado de lá distinto, o ocidental. É hoje claro que o dito centro-direita português só sabe viver com o muro, e nunca ousou ser distinto da esquerda, nunca teve coragem para ser direita.
Pró terceiro-mundista, a casta pensante do regime tudo tem feito para deixar do lado de fora do muro mental a dignidade da tradição histórica e identitária secular dos portugueses, por seu lado filiada à milenar civilização ocidental de génese judaico-cristã e filosófica greco-romana. Considerando que o que está barrado pelo muro possui uma fortíssima carga histórica, cultural e identitária assente num poderoso conteúdo moral e intelectual, será uma questão de tempo até essa força civilizacional despedaçar o muro para renascer com a pujança das fórmulas reinventadas. Na substância, foi o que aconteceu no final do século XIV com o Renascimento, movimento que, a partir de Itália, reinventou o sentido do mundo suportado na tradição da Antiguidade Clássica greco-romana entrada em hibernação um milénio antes. A razão, o sentimento e a emoção humanas são mesmo assim, resistem ao tempo dos séculos e reinventam-se.
Não serão necessárias mais gerações para que o senso comum português assuma não apenas que o muro mental existe e que foi politicamente edificado desde 1974, como que o mesmo é a causa maior do persistente afundamento português em contexto europeu.
Se os donos mentais do regime insistem que o Chega não tem pensamento, não tem doutrina, não tem suporte moral ou intelectual – como se isso fosse uma evidência ou sentença para a eternidade – é por saberem que essa é a sua maior força nos tempos que se seguirão. O Chega é não só um projeto cívico e político com pensamento e pensadores estratégicos (alguns não podem assumir essa condição por vivermos numa ditadura mental, e o caso das universidades é terrível), como acima de tudo não são revolucionários, isto é, não se vão congregando nesse projeto reformista para inventarem a roda. Antes para fazerem confluir no Chega um conjunto vasto de grandes referências intelectuais do Ocidente, incluindo portuguesas, num compromisso com as sensibilidades quotidianas do presente capaz de orientar a transformação sustentável no sentido do reforço da inteligência, justiça, liberdade e prosperidade individuais e coletivas. Não existe hoje na Direção Nacional do Chega quem não saiba que o caminho é esse.
É por isso que o futuro do Partido será bem mais difícil do que até aqui, mas também bem mais promissor por ter de incidir na recuperação e revitalização social de parte substantiva da riqueza e complexidade do pensamento filosófico e, em geral, intelectual da tradição ocidental que, em Portugal, a atual casta pensante marginalizou, desvalorizou, silenciou, expulsou das universidades, em especial das universidades públicas, consequentemente dos ensinos secundário e básico, uma verdadeira razia mental. O regime vigente sacrificou a inteligência enquanto fenómeno socialmente partilhado no altar da mono-divinização do marxismo-leninismo de génese totalitária importado de fora do Ocidente, da falhada União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS, 1917/1922-1991).
Para ser incisivo, a orientação intelectual do Chega sustentar-se-á num campo amplo de pensadores como Padre António Vieira, Edmund Burke, Alexis de Tocqueville, Nietzsche, Max Weber, Freud, Ludwig von Mises, Hayek, Karl Popper, Jaime Nogueira Pinto, Roger Scruton, Olavo de Carvalho, Jordan Peterson e mais uma lista interminável desde o Antigo Testamento ou Platão. Claro que muitos deles não pensam como os intelectuais que iluminam a Terceira República Portuguesa, também com a sua lista interminável de pensadores marxistas, entre os nacionais de Eduardo Lourenço a Boaventura de Sousa Santos, passando por José Saramago. Mas estes não podem ser referências do Chega por representarem a quinquilharia intelectual de um tempo miserável e caduco, em muito desabrochado no último meio século.
É contra um regime que importou o ideal mental soviético para corromper a herança moral e intelectual da tradição portuguesa desbaratando, desse modo, a riqueza e a complexidade da sua maior força, o capital o humano instituído ao longo de séculos pela identidade nacional, que será inevitável a necessidade de uma terapia mental coletiva num contexto de reconquista da liberdade de pensar para aprofundar a democracia. Essa é uma das funções nobres das ambições reformistas.
Daí tantos incómodos com o Chega. Estes mais não são do que sintomas de má consciência dos responsáveis por recalcamentos suficientemente tenebrosos por atingirem sensibilidades sociais genuínas e legítimas dos portugueses comuns. Destaco dimensões fundamentais da vida religiosa, da identidade e história nacional seculares, da filiação a certos valores e tradições, do direito humano fundamental dos povos se filiarem à sua pertença racial, sexual ou territorial ancestral ou natural (como se ser branco, heterossexual e proteger as fronteiras territoriais do país fossem, em si, crimes contra a humanidade), da liberdade de pensamento – parte de tudo isso escorraçado da dignidade da existência institucional e social por um regime político gerado em meados da década de setenta do século XX, os anos do auge do domínio soviético no mundo no contexto da Guerra Fria.
Mas há sempre momentos em que a intuição social de qualquer coisa estar profundamente errada na vida coletiva, e que amadurece para se transformar em consciência social. Esta é a fase em que os indivíduos começam a ousar apropriar-se do seu destino coletivo contra os poderes tutelares instituídos (no passado religiosos, hoje políticos) que os destratam como sujeitos sociais e históricos menores. Esse é o significado do cartão amarelo mostrado ao regime nas eleições presidenciais de 2021. O fenómeno consolidar-se-á quando a componente intuitiva ou popular, fundamental e cada vez mais sólida do Chega, passar a ser devidamente sustentada, em termos de impacto na grande opinião pública, pela componente não menos sólida e não menos fundamental da produção escrita, a que garante sustentabilidade a qualquer movimento histórico e social reformista. Para o ser, o último tem de sobreviver a médio e a longo prazos a partir de referentes morais e intelectuais fiáveis e estáveis que apenas uma produção escrita, com um certo cariz doutrinário, garante.
O Chega e o seu Gabinete de Estudos sabem por que razões conquistaram 496.653 votos nas eleições presidenciais de 2021, e como dignificá-los de agora em diante. O caminho tem de ser de uma ainda mais ampla congregação de vontades entre os portugueses para derrubar, em definitivo, o vergonhoso muro mental construído desde 1974 que gerou e sedimentou, em pleno Ocidente, uma semidemocracia terceiro-mundista mental e economicamente pobre.