Agora que a Covid-19 parece estar sob controlo na China (a fazer fé nos dados oficiais) e a Europa e os Estados Unidos se desdobram em esforços para minimizar a sua propagação evitando que os respetivos serviços de saúde entrem em colapso, a máquina de propaganda ao serviço do Partido Comunista chinês (PCC) não perdeu tempo a compor a narrativa sobre o coronavírus e o que se segue. Os objetivos de comunicação a curto e longo prazo são claros.
Primeiro, é necessário ocultar, com a devida conivência da Organização Mundial de Saúde (OMS), as circunstâncias que ditaram o aparecimento do vírus em Wuhan. Isso foi prontamente comprovado pela reação do porta-voz do Ministério dos Negócios Estrangeiros chinês, Lijian Zhao, que, num tweet no início de Março, tentou lançar uma campanha de desinformação onde culpava o exército americano de ter trazido o vírus para Wuhan em Outubro de 2019. Tudo isto, recorde-se, numa altura em que a versão de que o Covid-19 teria tido origem num mercado em Wuhan começava a ser questionada. Um outra hipótese entretanto levantada sugeria que o surto de Covid-19 poderia ter começado na sequência de um acidente no laboratório do Centro de Controlo e Prevenção de Doenças de Wuhan. Note-se que neste laboratório, localizado nas imediações do tal mercado, se conduziam testes com diferentes tipos de coronavírus. Acidentes desta natureza podem sempre acontecer. O que não pode acontecer é que, qualquer que seja a verdadeira origem do surto de Covid-19, as autoridades chinesas se preocupem mais em ocultar o aparecimento do vírus e esconder informação durante mais de um mês. Perdeu-se tempo precioso para se educar a população e implementar medidas para mitigar a propagação do vírus. Pior: com o vírus detetado em Novembro 2019, as autoridades chinesas não só ocultaram informação como não hesitaram em silenciar médicos que fizeram soar o alarme. Entre eles está o caso do doutor Li Wenliang, acusado pelo Departamento de Segurança Pública de fazer afirmações falsas com potencial para destabilizar “a ordem pública”, que acabaria por morrer infetado com Covid-19. Ao bom estilo marxista-leninista, a purga às vozes indesejadas não se ficou por aqui. Paralelemente, continua a limpeza de qualquer tipo de crítica à atuação do PCC nas redes sociais e no interior do próprio partido como o recente caso de Ren Zhiqiang demonstra.
Segundo, é fundamental exaltar o espírito de sacrifício do bom povo chinês (mesmo que isso tenha um custo absurdo em termos de uma ainda maior limitação das liberdades individuais) e, mais importante, glorificar a ação do PCC e Xi Jinping que, que depois de ter estado várias semanas ausente (quando o Covid-19 se propagava rapidamente), voltou a aparecer como o grande líder (apenas quando a situação começou a ficar sob controlo).
Terceiro, urge lançar uma campanha de propaganda internacional com o propósito de moldar perceções, ou seja, tornar o principal responsável pelo desastre do Covid-19 no país que irá salvar o mundo da pandemia que ele próprio criou. Tudo o resto não importa. O pior no meio desta história é que Pequim encontra aliados (não importa se conscientes ou inconscientes) nas Nações Unidas, OMS ou mesmo em alguns órgãos de comunicação social Ocidentais que há umas semanas estavam mais preocupados em discutir se a designação de “vírus de Wuhan” era racista ou não. O silêncio ensurdecedor que se sente numa altura em que se deveria confrontar a China com as suas responsabilidades não será alheio à crescente influência financeira, económica e política de Pequim no plano internacional. É justamente neste ponto que importa olhar para o que se passa na OMS como um estudo daquilo que o PCC pretende de organizações multilaterais e, em última análise, de um sistema internacional multipolar.
Ao contrário do que sucedeu durante a epidemia da SARS em 2003, a OMS tem sido conivente com a negligência demonstrada pelo governo chinês na gestão do Covid-19. O seguinte exemplo ilustra bem a situação. Em meados de Janeiro quando os médicos chineses já sabiam que o coronavírus se transmitia entre humanos, a OMS veio a público dizer que não havia provas que confirmassem casos de transmissão entre humanos. No final do mês, o diretor-geral da OMS, o etíope Tedros Ghebrevesus, deslocou-se a Pequim para uma reunião com o Presidente Xi Jinping. Na sequência do encontro, Tedros revelou estar impressionado com a atuação das autoridades chinesas no controlo do coronavírus (que não estava controlado de todo) e com a abertura do governo chinês para partilhar informação, isto depois de se saber que as autoridades tinham ocultado informação durante mais de um mês. Como é que uma organização que tem desempenhado um papel crucial no combate e erradicação de doenças infeciosas no passado se presta hoje a este tipo de subserviência?
A resposta está naturalmente na crescente influência da China na ONU e OMS. Com um orçamento deficitário, a OMS depende cada vez mais das contribuições financeiras dos seus membros. Nos últimos anos, a China chegou-se à frente para pagar a fatura contribuindo com $86 milhões para o orçamento da OMS, o que representa um aumento de 52% desde 2014. A isto acresce o facto de a China ter sido um aliado fundamental na eleição de Tedros para diretor-geral da OMS. Um dos primeiros atos de vassalagem de Tedros a Pequim foi a confirmação de que a OMS não reconhecia a autonomia de Taiwan, reiterando o apoio ao princípio de “uma só China”.
Numa altura em que os Estados Unidos parecem menos interessados em liderar a ordem internacional liberal que tão bem tem servido os seus interesses e relegam para segundo plano a participação em organizações multilaterais, a China faz o contrário. A forma como Pequim instrumentalizou a OMS para servir os seus próprios interesses a expensas da credibilidade de uma instituição até aqui bastante respeitada, deixa antever aquilo que a China pretende das instituições multilaterais criadas à luz de princípios liberais que Pequim manifestamente não respeita. Perante este cenário preocupante, pelo menos na perspetiva das democracias Ocidentais, era bom podermos ouvir mais vozes com responsabilidades políticas a condenar e responsabilizar a China pelas suas ações. Dado o falhanço da OMS na resposta a esta crise seria bom saber o que pensa o Secretário-Geral da ONU, António Guterres. Infelizmente, tendo em conta a sua atuação ao longo desta crise (e mandato, diga-se), não se poderá esperar mais do que uma continuação de discursos vácuos absolutamente inúteis. É triste.