Foi há apenas dois meses que Xi Jinping viu o congresso do partido comunista confirmar de forma praticamente unânime a sua reeleição – a terceira, em virtude de uma alteração estatutária aprovada propositadamente para o efeito. O presidente chinês é, por agora, um líder político aclamado pelos seus pares e respeitado, se não mesmo temido, pela generalidade da população.
Xi personifica, com inteligência e mão de ferro, uma liderança que vai conseguindo resistir à passagem do tempo e que assenta fundamentalmente em três dimensões: a económica, revelada na aposta num crescimento agressivo, dependente do setor da construção e na disseminação de uma nova rota da seda, que procura estender os seus tentáculos de influência à Europa e ao continente africano; a do controlo público, revelado no objetivo do absoluto domínio do aparelho de estado e do setor empresarial, ambos entendidos como braços extensíveis do partido e a ele subservientes; e a dimensão política, materializada na imposição à população de um regime de aparência democrática, com limitações evidentes às liberdades individuais, de imprensa e de manifestação, onde o papel do escrutínio e de oposição são inexistentes.
É neste contexto, pautado por severas restrições, que as últimas semanas ganham particular relevância, estando a ser lidas como um desafio ao próprio líder chinês, que enfrenta aquela que provavelmente será a maior provação ao seu exercício de poder.
A crescente onda de protestos que se vem registando um pouco por todo o país terá na sua génese inúmeras causas e motivações, sendo a mais evidente o descontentamento generalizado da população face ao falhanço da política de controlo “Covid-Zero”, promovida pelo governo. Decorridas longas semanas de um lock down inflexível e sem fim à vista, torna-se claro que manter a economia aberta, em pleno funcionamento, não se coaduna com a adoção de medidas draconianas de confinamento, que passam por submeter trabalhadores, famílias e população em geral a uma espécie de encarceramento domiciliário.
Ao prosseguir esta política altamente restritiva, Xi Jinping e a elite política chinesa demonstram estar aprisionados a uma ideia obsessiva e quiçá irrealista de zero casos de contaminação.
Subsistem duas interpretações possíveis que podem ajudar a explicar a razão de ser de medidas tão drásticas. A primeira sugere que a China não pode permitir-se a veleidade de abrir a sociedade e a economia tout court, à semelhança do que fizeram os países ocidentais, uma vez que, para além de uma taxa de vacinação baixíssima, as vacinas por si desenvolvidas têm uma eficácia questionável. A acrescer a isto, dá-se a circunstância de o país apresentar uma rede de serviços hospitalares sem capacidade de resposta aceitável e um número diminuto de camas disponíveis em cuidados intensivos.
Uma segunda leitura admissível é a de que o governo chinês tem usado os anos de pandemia como pretexto para reforçar o controlo social existente, aperfeiçoando-o e tornando-o ainda mais opressivo.
Acontece que as recentes e repentinas explosões de protestos um pouco por todo o país para além de abalar o status quo existente, ameaçam também a tendência de crescimento da economia, elemento essencial na política de afirmação interna e externa que Xi Jinping pretende projetar.
Nos últimos 50 anos, a economia chinesa apresentou indicadores de crescimento médio anual próximos dos 10%. Por contraste, as previsões mais recentes da consultora Oxford Economics revêm em baixa aquele indicador, apontando para que o crescimento anual do PIB seja, em média, de 4,5%, na próxima década, reduzindo-o para cerca de 3% entre 2030 e 2040. Na mesma linha, o Banco Mundial reviu a sua previsão de crescimento económico chinês para o presente ano em 2,8%.
Face a tudo isto, constata-se que, nos últimos 2 anos, a China não só falhou na pretensão de debelar em definitivo a pandemia, como tem a taxa de infeção mais alta do mundo e uma população que, massacrada por 2 longos anos de restrições absurdas, está hoje menos disponível para, com o mesmo grau de obediência, acolher os ditames de um poder absoluto. Com este caldo de cultura, reúnem-se as condições necessárias para que o descalabro económico-financeiro seja uma realidade possível a breve trecho.
Em razão das decisões ziguezagueantes do governo nas últimas semanas, ora ordenando um confinamento cego, ora levantando-o, muitas dúvidas e incertezas têm sido suscitadas a nível internacional. Estados Unidos e Itália são os primeiros países a readotar a obrigatoriedade da realização de testes covid aos passageiros com origem na China, adivinhando-se que outros se lhes seguirão.
O que fica do comportamento e das decisões da elite política chinesa ao longo dos últimos 3 anos é a perceção de que, em várias dimensões, a China é ainda um gigante com pés de barro.