Cada vez mais citadinos e a viver em cima do mar, mas muito longe da “cidade 15 minutos” de que nos fala Carlos Moreno, ou idealizada por Duarte Pacheco (para algumas cidades mais pequenas e bairros das maiores cidades, Bairro de Alvalade, em Lisboa, por exemplo). O processo – sim, não é apenas uma mera tendência ou moda passageira, é um verdadeiro processo de décadas que está em curso – vem sendo estudado nas suas muitas vertentes, das origens às consequências.

É um processo global e as Nações Unidas avançam com grandes números para esse movimento de aglomeração em cidades. Dentro em breve, duas em cada três pessoas no mundo viverão em cidades médias ou grandes. As cidades, dentro de uma década, poderão abrigar 6 mil milhões de pessoas em todo o Mundo. Essas cidades, que crescem e que alargam as suas externalidades sobre outros territórios, localizam-se, em grande parte, no litoral, à beira-mar, portanto. É assim um duplo movimento de “citadinação” e de “litoralização” das pessoas. Daí o neologismo que dá título a este texto: “citalitoralização”, na esteira de uma criativa justaposição de Mia Couto.

As cidades crescem de duas formas, pelo planeamento, sendo esse crescimento desejado e desenhado, e por si mesmas, atentas as oportunidades que elas próprias criam. Têm vida própria, as cidades. Uma vez resolvidos os problemas do abastecimento: redes de água, saneamento, energia, alimentação, transportes, saúde e ação social, elas tendem a crescer sem limites, ocupando todos os espaços potenciais. Vejam-se as fronteiras inexistentes ou impercetíveis entre Lisboa e Amadora ou Oeiras, ou entre Oeiras e Cascais, por exemplo, ou Porto e Matosinhos.

Os processos de assentamentos duradouros, pelo desenvolvimento da agricultura, da domesticação de animais, transformação de produtos e da criação das primeiras redes de abastecimento e de troca, começaram quase sempre à beira-rio. Quase todas as cidades estão ponderada e estrategicamente localizadas à beira-rio (tirando as erigidas por razões de segurança, as quais estão em sítios elevados, como a Guarda, por exemplo). As linhas de água eram fonte de abastecimento, mas também de escoamento dos saneamentos (ainda hoje assim é). O processo de engrandecimento das cidades, num tempo mais próximo, terá começado com a fundação das cidades romanas, já devidamente esquematizadas por funcionalidades, mas só viria a intensificar-se seriamente com a revolução industrial, já no século XVIII, que levou milhões de operários ao êxodo rural, acumulando-se nos então limitados perímetros citadinos, fazendo as cidades crescer em circulares (no caso de Lisboa: 1.ª Circular, 2.ª Circular, Circular Regional Exterior de Lisboa).

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No presente, temos as mesmas cidades que já cresciam naturalmente a crescerem pela chegada de imigrantes. E é também para as cidades do Litoral que eles se dirigem. É aí que estão os aeroportos, os portos e as oportunidades de trabalho para quem não tem tempo a perder. E a crescerem também pelas dinâmicas do turismo, sobretudo as viagens “low cost”. O turismo coloca em algumas cidades do litoral e servidas por aeroporto (como Lisboa, Porto, Faro, Funchal, Ponta Delgada) milhares de pessoas por dia, avolumando fluxos de consumo e procura de serviços, ao mesmo tempo que a mudança de funcionalidades dos imóveis – de habitação e comércio para alojamentos ao serviço do turismo – provoca a designada “gentrificação”, com as pessoas a saírem dos centros das cidades para as periferias das mesmas. Verdadeiramente estas pessoas não saem da cidade, apenas empurram os limites geográficos da cidade para mais longe, mantendo as vidas, os trabalhos e aumentando os fluxos pendulares.

Num momento recente (2020 a 2022), por força de uma externalidade indesejada, a pandemia Covid-19, as cidades sofreram múltiplos estados de alma. Cidades vazias, cidades sem trânsito, teletrabalho, vida social resumida às residências de cada família e vida comercial e cultural feitas na proximidade… Controlada a pandemia, com pouca aprendizagem daí retirada, regressamos à cidade difícil e “atafulhada” de trânsito, não obstante os passos gigantescos que as políticas públicas deram em termos de transportes, intermodalidade dos mesmos e apoios sociais.

Entretanto, metade da força de trabalho de Portugal concentra-se já nas duas grandes Áreas Metropolitanas e parece não haver volta a dar… é um processo global, este da “citalitoralização” das pessoas, por mais apoios e estímulos que possa haver em sentido inverso (do litoral para o interior e das cidades para o campo). Não é um problema nosso. É um problema do nosso planeta e da forma como o ocupamos, fruímos e exploramos. No Japão, por exemplo, oferece-se generoso incentivo para as famílias que saiam da grande Tóquio.

Nós por cá temos ainda um sério problema de sustentabilidade demográfica. Estamos com saldos naturais negativos (que se manterão por muitas dezenas de anos), pelo que, na medida em que comunidades mais pequenas tornarem inviáveis certos negócios e empreendimentos, a procura pelas cidades será ainda maior. A escassez da procura de serviços ditará o encerramento da fraca oferta existente em alguns territórios de menor densidade populacional.

Face à inevitável citalitoralização, exigem-se “soluções assentes no compromisso e na governança, que ofereçam o tanto mais que os cidadãos desejam da sua cidade, desde logo a começar pela sustentabilidade e pela cidade multissensorial”, seguindo o pensamento de François Ascher, esse grande urbanista do século XX. Temos de fazer um esforço por dar a cada cidadão a sua cidade, ao seu ritmo e interesse. Cada um de nós quer uma aldeia dentro da sua cidade, como escrevemos em Breve recensão crítica do livro novos princípios do urbanismo de François Ascher, 2019:

Note-se que desde há muito que o novo urbanismo vem concorrendo com o melhor que o ambiente rural oferecia: luz, espaço, ausência de ruído, acessibilidade, verde, conforto e singularidade, sem perder todas as outras vantagens que se reconhece as cidades proporcionam. No fundo, o que cada um de nós procura e privilegia na cidade é a «sua aldeia». Uma aldeia nossa dentro de cada cidade globalmente posicionada. Por isso nos orçamentos participativos ‒ quando as escolhas públicas são devolvidas pelos políticos aos cidadãos ‒ as ciclovias, os parques, o arranjo de praças públicas e até os espaços comerciais de proximidade vêm ganhando força. Todos queremos cidades atraentes, modernas, competitivas, mas igualmente disfrutáveis, inclusivas e amigas. Amigas da família também.”