Setembro de 2022. Ocasião para nos lembrarmos, em anos “redondos”, de diversos acontecimentos. Desde logo, os 1500 anos do aprisionamento de Severino Boécio; os 1000 anos da incursão do Arcebispo Pilgrim de Colónia nos principados meridionais da Península Itálica; os 500 anos da “tradução” do Novo Testamento por parte de Lutero; os 250 anos da aniquilação, por um furacão, da então colónia francesa de New Orleans; e, no que motiva estas palavras, os 100 anos da destruição selvática de Esmirna às mãos das forças turcas.

Para um Cristão, Esmirna está repleta de evocações. Cidade no centro da costa ocidental da atual Turquia, é uma das comunidades referidas no “Livro do Apocalipse” (séc. I) e foi nela que foi bispo, e martirizado «segundo o evangelho» (isto é, por amor e para o amor), Policarpo de Esmirna (séc. II), discípulo direto de João o Evangelista e mestre de Ireneu de Lião. A comunidade cristã dessa cidade recebeu uma das mais extraordinárias cartas de Inácio de Antioquia (séc. II), chegou a adquirir o estatuto eclesiástico de Metrópole (séc. IX) e acolheu, como lugar de refúgio das perseguições iconoclastas, Teodoro o Estudita (séc. IX).

Não admira, assim, que esse evento de setembro de 1922 esteja a ser motivo, por um lado, de recordações, comovidas e pungentes, nas comunidades cristãs gregas e arménias (que sabem que Deus é quando nos unimos no espaço e no tempo), e, por outro lado, de celebrações, no mínimo lamentáveis, por parte do atual regime, francamente anticristão, de Recep Erdoğan.

Porquê Esmirna para local de uma tamanha destruição e inerente massacre de, no mínimo, 100.000 cristãos em 1922?

Para se perceber isso há que, do ponto de vista histórico, recuar até ao fim da I Guerra Mundial. Nesse confuso período, concomitante com o fim do decadente Império Otomano, as potências saídas vitoriosas daquele conflito desmembraram esse Império, prometendo, nas palavras de David Lloyd George, territórios à Grécia. Esta, convicta da verdade dessas palavras, enceta, iniciando justamente por Esmirna e no ano de 1919, uma campanha de ocupação da Anatólia ocidental. Sem apoios substanciais, esta incursão estava destinada ao fracasso, e, numa inclusão (intencional?) com o seu princípio, terminou com o aduzido evento.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

Situada, sensivelmente, a meio dos 30 anos de genocídios de cristãos cometido pelos governos otomanos e, posteriormente, turcos, a calamidade de Esmirna pode parecer uma gota de sangue num oceano desse mesmo líquido vital. Contudo, ela foi tudo menos isso: foi algo prenhe de ofensa, injúria, aviltamento e, enfim, exterminação cuidadosa de uma cidade e de uma população cristã que era um óbice à turquificação, consciente e organizada, de uma sociedade querida como secular, mas da qual nunca se desejou retirar as raízes islâmicas.

Durante 10 dias “infernais”, um dantesco fogo (iniciado e alimentado, de um modo planeado e calculado, pelas tropas nacionalistas turcas, a ponto de a zona muçulmana ter sido totalmente poupada) consumiu milhares de edifícios; incinerou dezenas de milhares de pessoas (até que o cheiro a carne humana queimada parecesse o único que se podia discernir); e levou ao suicídio, mediante o se lançarem às aguas do Egeu, de centenas de crianças, adultos e idosos que não sabiam nadar. Seja os dessa cidade, seja os que nela se haviam refugiado fugindo do avanço das tropas turcas. E tudo isto diante da apatia de navios ingleses, franceses, italianos e dos EUA, que, esmagadoramente, recusaram acolher os que até eles se dirigiram.

A quase trimilenária presença de gregos na Anatólia foi, assim, virtualmente eliminada. Sucederam-se as “marchas da morte” e as “brutalidades indizíveis” nelas cometidas. Os milhares de refugiados que fugiram do “Grande Cataclismo”, que findou em Esmirna, e lograram chegar às costas gregas do Egeu, tiveram que reconstruir as suas vidas, desprovidas do que haviam perdido, nas favelas e bairros de lata limítrofes aos portos da Grécia continental, especialmente nos do Pireu e de Tessalónica.

Lendo, nos nossos dias, as descrições desse horrendo incidente, provindas dos poucos sobreviventes cristãos e dos exterminadores turcos (neste caso, cada vez mais expurgadas dos arquivos oficiais de Ancara), é absolutamente impossível acreditar que tamanha «redução até às cinzas de Esmirna e desmedida chacina da sua população cristã» (Winston Churchill) possa ter acontecido. Escrevi “chacina”, porém, não fora o respeito que sinto pela sensibilidade judaica para com esse termo religioso, poderia ter utilizado a palavra “holocausto”.

Com efeito, entre os textos dos executores da chacina de Esmirna, liderados ultimamente por Kemal Atatürk, refulge a ideia, inconcebivelmente gloriosa, de, no meio de intuitos meramente nacionalistas a tenderem para uma secularidade vigiada militarmente, se estar a praticar, numa decerto errada interpretação do islão, dois atos de cariz religioso islâmico. De um lado, a “grande jihad” (a cruenta); do outro, um ato de devoção sentenciado (segundo uma tradução cuja segurança desconheço e na linha de uma leitura literal que evidentemente não será aceitável) no Corão 2, 191: «Expulsa-os de onde te expulsaram».

Isto ocorreu, relembremos, há 100 anos. O mundo era diferente. O “ódio” islâmico pelos não-maometanos era tremendo, resultante sobretudo da perda do prestígio e da grandeza islâmica, efeito das intervenções de diversos países em zonas que o islão havia ocupado. Massacres como os de Esmirna seguiam-se, na sequência da longa história da expansão do islão; as potências ocidentais “encolhiam os ombros” e “viravam o rosto”, ora por medo ante uma nação geograficamente estratégica, ora por oportunismo ante as riquezas da mesma, ora, enfim, por pura hipocrisia manifestada no hiato entre os valores professados e os vividos.

100 anos são, nos nossos dias de existência num vórtice em constante aceleração, quase uma eternidade. Todavia, há bem poucos dias, o sucedido em Esmirna foi recordado, com um júbilo inconcebível (dito, por exemplo, pelas palavras «espetáculo maravilhoso»), pelo presidente da Turquia (país que, não nos esqueçamos, é membro da NATO e deseja fazer parte da UE).

Na celebração do centenário do “Dia da Vitória”, Tayyip Erdoğan (num discurso pensado já para as próximas eleições gerais de 2023, mas igualmente dirigido ao governo e ao povo grego) apelou à memória jubilosa de tal tragédia. E fê-lo, descrevendo-o como um evento de extremo relevo e, simultaneamente, como passível de uma repetição iminente, num acenar para recentes intervenções bélicas turcas na Síria, no Iraque e na Líbia: «preparem-se [ó gregos]; eis que surgiremos subitamente de noite».

Isso foi realizado no meio de uma série de revisionismos históricos incompreensíveis por quem governa, hoje, territórios onde a razão, a busca de verdade e o amor mobilizaram inúmeros pensadores gregos e crentes cristãos durante séculos. Que contraste, pois, com as palavras de Erdoğan que, nessa mesma celebração, apodou a Grécia e os EUA de «infiéis e abjetos». Se “abjetos” não tem, diretamente, qualquer ligação religiosa, não é difícil a ver em “infiéis” (termo evocativo, quiçá, de uma nova “grande jihad” no sulco da de há 100 anos e que, segundo aquele, começou ao som de milhares de vozes a cantarem “Alá, Alá é o maior”).

É evidente que um tal discurso foi pensado sobretudo para “consumo interno” e insere-se, como disse, dentro da dinâmica da proximidade de importantes eleições. Contudo, não tenhamos dúvida que expressará, face o júbilo com que foi recebido, o sentir de muitos turcos. Sentir esse que, diante de uma crise económica devastadora, tem levado o partido no poder a enveredar por palavras cada vez mais explícitas, e talvez até xenófobas, de afirmação da superioridade rácica turca sobre os povos árabes, curdos e ocidentais, para buscar nestes “culpados fáceis” pelas dificuldades vigentes e, a par, dinamizar ímpetos e futuríveis votos.

De facto, a atual política de crescente des-secularização da sociedade Turca é manifesta: a mesquitização de múltiplas igrejas e antigas igrejas entretanto convertidas em museus e outros espaços públicos; a obrigatoriedade de todos os alunos estudarem o Corão e a recusa em subsidiar escolas que acolham alunos cristãos (estes dois factos levados a cabo pela temível “Diyanet” em articulação com Erdoğan); as limitações aos restauros e aberturas de novas igrejas; as punições infligidas a quem promove o Cristianismo e a este adere; etc.

Já creio tê-lo dito nas “páginas” deste órgão informativo: os cristãos não alimentam ódio por quem quer que seja, mas isso não impede, antes pelo contrário, que digam a verdade e defendam a vida integral daqueles que são vítimas de injustiças e atrocidades. Particularmente as cometidas, de modo logicamente ilógico, em nome das várias religiões que (ainda) não conhecem um Deus que Se ajoelha ante nós, numa humildade que não é degradação, mas o pináculo de uma universal oferta desarmada de amor.

Religiões essas que, ao revés, idolatram divindades que escorraçam o ser humano (que as fabricou) das escalas de valores que, devido a esse mesmo fabricar, têm no seu topo, não o amor altruísta feito generosidade, mas o poder egoísta tornado despotismo megalómano. “Cessando-se” a vida, só se cultiva aquela morte incapaz de responder aos apelos da bondade.

Pena é, neste sentido, que o Presidente da Turquia tenha preferido uma húbris imensurável que teria feito Édipo prantear, em vez de ler e interiorizar a revolucionária encíclica “Fratelli tutti” do venturoso Papa Francisco (perfeito conhecedor, naturalmente, do volume “A última Batalha” das “Crónicas de Narnia” de C S. Lewis). Toda a evasão nunca é uma solução, até porque se as derrotas apenas “abatem”, já as vitórias, que não do amor, “destroem”.

Pena é, igualmente, que poucos sejam os católicos que a hajam estudado a fundo, quiçá por, estando embebidos nas coevas retóricas ideológicas, se tenham deparado (ao contactarem com as palavras soltas, fluídas e oscilantes de tal encíclica, a qual pode ser entendida como a expressão do mapeamento de uma profecia auto-consumadora), ante um mistério. Um mistério que entenderam, erradamente, como sendo um precipício de temor, e não, como deveriam ter vislumbrado, uma profundidade no amor. Mais uma vez se vê que uma das realidades mais tristes do Cristianismo é a tristeza da superficialidade espiritual. Mas antes isto do que o ódio destilado na Turquia.