Passam 500 anos do nascimento do nosso maior poeta, neste ano em que se comemoram os 50 anos daquela que foi a Revolução decisiva do Portugal contemporâneo. As palavras de um dos grandes da poesia portuguesa dão-me o ânimo para esta reflexão. Com efeito, no seu recente livro de Memórias, Manuel Alegre identifica aquela que para ele foi a maior Revolução, e que ainda hoje permanece em constante réplica, em si: «Aquele peso em mim – meu coração». Um só verso. E uma revolução. Não só a emoção estética, mas um terramoto por dentro. Ou para usar as suas precisas palavras: uma revolução ontológica.
A Tabacaria de Pessoa virou-o do avesso e pôs tudo em causa dentro de mim. Passei a sentir que também eu cantava a «cantiga do infinito numa capoeira». Explica: As pessoas passavam para o seu trabalho e eu perguntava-me: para quê? Que sentido tinham o quotidiano, os ofícios, as rotinas? E a própria escrita? (…) Para quê estudar? Para quê escrever? Para quê qualquer coisa!». E lembrando os primeiros dias de Escola: Porque é que uns tinham sapatos e outros não? E nunca desistiu de procurar respostas, numa inquietação permanente.
Passados 500 anos do nascimento de Camões as Minhas Memórias abrem uma janela para a compreensão da natureza e alcance da obra camoniana, uma Epopeia com raízes Líricas. Em 20 Poemas para Camões, Manuel Alegre mantém-se fiel ao rio caudaloso que em Coimbra reconheceu brotar em si, rio que só conhece o mar como destino – apaixonado pelo Mondego com os versos de Camões docemente correndo que até ao mar não param, diz agora no recente livro, que se mantém no mesmo registo.
Quem sou eu?, é a pergunta a mostrar que a grandeza de um povo e de uma obra se enraízam na procura de sentido. Numa semana em que tanto se falou de Identidade e Família, pensar em Camões é mergulhar também nos terrenos da Identidade, é reconhecer que os discursos sobre a nossa nobre nação só têm sentido se alicerçados pelas perguntas que ainda hoje o poeta traz no seu coração. É esta a pena que interessa!
Não sei com que pena escreve a criada Comissão encarregue das Comemorações do nascimento do homem dos Lusíadas, ignoro o ponto em que estão os trabalhos. Mas no que me respeita não posso deixar de olhar para o livro que tenho em mãos de forma providencial. Ao ler as Memórias Minhas (D. Quixote), abrem-se os horizontes da poesia, do seu valor para a compreensão do humano. O nosso país precisa de economistas mas não só. Precisa também de poetas, de filósofos. Que belo diagnóstico!
É muito simples. Os poemas de amor nascem do fundo do coração, que em todos “bate” igual, mas que a genialidade do poeta sabe exprimir como ninguém.
O professor de religião e moral do adolescente Manuel criticou o intenso soneto de amor que lhe merecera o prémio dos Jogos florais: achou conveniente advertir-me que o excesso de amor humano não deixa lugar para o divino. Mas o aluno pensava, e bem , que a haver Deus era no amor que ele devia estar.
A lembrar Leopardi e seu poema à Bela Amada, também Alegre escreve não a uma amada concreta mas ao Amor a que o poeta aspira. “Mas não foi só aquele soneto. Foram muitos, Inocentes, ingénuos, péssimos. Mais do que dirigidos a uma amada concreta, exaltavam (ainda que muito mal) o amor do amor. “
Celebrar Camões é celebrar a aspiração de amor que todo o homem traz em si, fogo que arde sem se ver. Celebrar Camões é celebrar Abril sem que os cravos tapem o poeta. É celebrar o Abril das águas mil, dos rios que desaguam no Mar, das lágrimas todas da mesma cor, como lembrou outro dos nossos poetas (António Gedeão) a frisar a universalidade da poesia.
Não posso adiar o coração (Ramos Rosa) que pelo sonho é que vamos (Sebastião da Gama), e tantos e tantos, Herberto Helder que Alegre destaca… Que Portugal é um país de poetas!
E que “pena” não aproveitar esta matriz ! Quem se esquece dos seus poetas esquece-se de si mesmo, varrendo de uma penada as perguntas que incomodam. Não é o caso deste homem que hoje aqui convoquei: Acreditei, deixei de acreditar, voltei a acreditar. Em quê? Não sei ao certo. Causas, poemas, combates. Sempre pronto a apanhar a primeira caravela que passasse. Mas ainda hoje, tantos anos depois, sempre que leio «Tabacaria» não consigo deixar de perguntar: para quê?. «Perplexo, como quem pensou e achou e esqueceu».
A luta continua…