Portugal tem sorte. Dado o intenso tráfego de navios e cargas perto das suas costas, é rara a ocorrência e baixa a quantidade de poluição causada por navios nas suas águas. Há décadas que não ocorrem grandes derrames de produtos poluentes, e as descargas de porões de navios em trânsito reduziu-se muito desde os anos oitenta do século passado. Quem tem mais de 40 anos recorda-se de caminhar em areais com manchas negras, e até de ver pedaços de crude agarrados aos pés.

Infelizmente, voltaram a ver-se areais manchados de negro e espumas acastanhadas na rebentação em algumas praias, por exemplo, na Costa de Caparica, denunciando a presença de hidrocarbonetos nas águas e, quiçá, de muitos pequenos derrames, o que indicia falta de acompanhamento e de fiscalização e controlo, apesar do rastreamento por satélite e dos recursos disponibilizados pela Agência Europeia de Segurança Marítima (EMSA).

Nunca houve tantos recursos e normas para a prevenção, o combate e a repressão da poluição do meio marinho. Mas continua a faltar uma orgânica institucionalizada para o combate à poluição do mar.

Portugal começou bem nos anos sessenta, com a criação da Comissão Nacional contra a Poluição do Mar. O decreto 90/71 tornou-a em órgão de conselho das autoridades marítimas e das autoridades sanitárias na fixação da multa por poluição do meio marinho. Depois, o despacho do ministro da Marinha 11/73 criou o Serviço de Combate à Poluição do Mar por Hidrocarbonetos (SCPMH), na dependência do Diretor-Geral dos Serviços de Fomento Marítimo (DGSFM) e este, do ministro da Marinha*. Estava bem começar pela via administrativa, para aprender com a experiência, e então institucionalizar por lei.

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Na sequência da Convenção OPRC 90 (assinada em 1990) foi adotado um modelo de combate à poluição do mar em emergência, o Plano Mar Limpo, aprovado e posto em vigor pela resolução do Conselho de Ministros 25/93. A sua origem esteve na DGSFM, no início dos anos oitenta, e foi concebido como decreto-lei (DL). Mas o Governo aceitou que a Armada vetasse a reforma do SAM, em 1993, e optou por aquele diploma administrativo, que densifica a OPRC 90, mas que só vincula as entidades subordinadas ao Governo. Por isso, as entidades privadas, as regiões autónomas, as autarquias locais, as administrações portuárias institucionalizadas em empresas não estão vinculadas ao Plano Mar Limpo. Todas têm uma razão para o cumprir umas vezes e outras não, e culpar outros pelas falhas. Acresce que o texto está gravemente desatualizado.

A reforma do Sistema de Autoridade Marítima (SAM) de 2002, através do DL 44/2002, substituiu a Direção-Geral de Marinha (DGM) pela Direção-Geral de Autoridade Marítima (DGAM). Mas, enquanto o SAM era um serviço hierarquizado, subordinado ao comandante da Armada, o SAM reformado é apenas um conjunto de órgãos e serviços com poderes de autoridade marítima. Além disso, a DGAM não foi regulamentada, conforme prevê o DL 44/2002, porque a Armada não aceitou aplicar aos seus oficiais neste serviço civil as normas aplicáveis a serviços civis, e o Governo (através do ministro da Defesa Nacional) aceitou que a Armada vetasse a densificação (tal como ocorreu com a regulamentação da DGM desde 1984). Assim, a poluição do mar só é referida três vezes naquele decreto-lei, mas não se definem órgãos nem competências. O SCPMH não tem existência legal, nunca foi extinto, não foi reformado em 2002, e nem o Plano Mar Limpo o refere. O diretor-geral da Autoridade Marítima tem alterado as designações do serviço e da chefia, sem ter poderes para alterar o despacho ministerial de 1973.

Aos que dizem que o modelo da Autoridade Marítima tem mais de dois séculos, e que não deve mudar porque funciona bem, têm aqui prova do contrário. Só a sorte e o segredo militar obstam a que sejam públicas e notórias as falhas. Nem aqui se aplicam os dois séculos de domínio da Autoridade Marítima pela Armada, pois esta função tem meio século, e tem mais tempo como serviço civil do que militar. E, claro, não há poupanças por ser a Armada a executar estas funções – mesmo que os seus oficiais gostassem delas; ainda me recordo do atual comandante da Armada referir-se a elas como “o carro do lixo”…

Esta situação mostra bem como a Armada prefere um modelo sem enquadramento legal, em que os seus oficiais podem atuar com a mais ampla autonomia. Sem clareza de atribuições e de competências, nem de linhas hierárquicas, logo, de responsabilidades, está-se ante uma falsa flexibilidade. Ela é em parte devida à confusão entre entidades civis e militares nesta política pública civil, o que dificulta também o recurso a fundos da União Europeia para despesas de capital, hoje financiadas sobretudo pelas taxas e taxinhas cobradas no setor.

Na Polícia Marítima falta há décadas uma lei orgânica; além disso, há sobreposição de competências com a GNR e não só. Na prevenção e combate à poluição do mar, falta há décadas o enquadramento legal e substantivo, institucional e para a ação em emergência; e também há sobreposição de competências com outros serviços públicos. E mais exemplos se podem dar de disfunções na Autoridade Marítima, apesar de a escassa cobertura mediática sugerir aos leigos que tudo está bem.

Noutros países, a prevenção e o combate à poluição do mar são funções típicas da administração marítima, ou de empresas públicas (este é o caso da Espanha, com a SASEMAR). Estão enquadradas pela legislação nacional, porque, em caso de emergência, tem de haver máxima rapidez e agilidade, para garantir eficácia e eficiência, e não pode haver dúvidas sobre as atribuições e competências de cada entidade e agente, nacional ou estrangeiro. A matéria não é um assunto interno da Armada, e a responsabilização é crucial num Estado de Direito.

A situação exposta revela o menosprezo da Armada e do Governo que há décadas deixa arrastar esta situação, pela prevenção e pelo combate à poluição do mar, ou até do mar português. O que traduz desconsideração pela Constituição, pelo Estado de Direito e pelos cidadãos, em nome dos quais os serviços públicos atuam graças a impostos pagos pelos contribuintes.

No início desta legislatura, há tempo e há condições políticas para que a ministra da Defesa Nacional, o ministro da Economia e do Mar, e o ministro do Ambiente tratem de formular e concretizar a reforma, que coloque a Autoridade Marítima, e a prevenção e o combate à poluição do mar em particular, em conformidade com a Constituição, e que a tornem mais eficaz e mais económica para o país.

* O autor chefiou o SCPMH de 2007 a 2010.