Em 1992, a Armada afirmou que não queria “gerir um sistema que não lhe pertence”; e manteve esta posição. Ela foi assumida durante a formulação da reforma do Sistema de Autoridade Marítima (SAM), criado em 1984, que visou adaptá-lo globalmente, e a Polícia Marítima (PM) em especial, à letra e ao espírito da Constituição (CRP), fixados em 1982. Emergiu uma negociação entre o Governo e a Armada. A Armada, como um Estado dentro do Estado, vetou a reforma. E o Governo, no decreto-lei (DL) 49/93, reconheceu que o SAM continuaria a “pertencer” à Armada.

Só outra década depois se reformou o SAM. A condescendência dos órgãos de soberania, o alheamento dos media e o receio de tantos políticos enfrentarem os almirantes, como Miranda Calha notou, levou a que mesmo a modesta reforma de 2002 tenha sido toda desvirtuada pela prática. Na Armada, dizia-se até que a reforma nada mudou…

Que uma reforma, ou uma política pública, seja negociada com os burocratas públicos que têm o dever de a executar revela o poder desses funcionários, como grupo de interesses. Só terem poder de veto e não conseguirem aumentar a sua autonomia parecer(-lhes-)á pouco; mas basta para manterem a “quinta”, de que extraem benefícios particulares (como poder, notoriedade mediática, boa imprensa, e rendimentos adicionais).

O bloqueio de reformas e políticas por parte de poderes fácticos é um mal nacional bem conhecido. E é tantas vezes acarinhado por quem não o devia tolerar. Um deputado disse em 1952 na Assembleia Nacional: “Há-de, por força, desgostar-se a Marinha?”. Outro, vem dizendo que tem “um fraquinho pela Marinha”. Um ministro da Defesa Nacional (MDN) disse que “o mar é da Marinha”. Desconhecimento e preconceitos pessoais somam-se a, e sustentam, o poder fáctico da Armada para explicar a timidez, ou cumplicidade, política e mediática. Mas não servem os interesses nacionais e são má política.

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A falta de alternativas à Armada em 1992, e até em 2002, pode explicar parte do receio de vários políticos em exigir que a Armada cumpra a CRP e a lei. Mas nas duas últimas décadas ocorreram relevantes mudanças de fundo:

com a integração da Guarda Fiscal na GNR em 1993, esta passou a ter atribuições e competências legais e técnicas no mar, concretizadas a partir de 2007;

o processo de integração europeia tem levado a ampla transferência de competências do capitão de porto para autoridades especializadas e inequivocamente civis;

os serviços da Administração Marítima têm vindo a robustecer-se nos três âmbitos de Estado de Bandeira, Estado Costeiro e Estado de Porto, definidos na Lei do Mar;

e, apesar da eficácia da Armada em racionar e manipular a informação, e evitar o debate (é ensurdecedor o silêncio da Academia de Marinha sobre esta matéria), já há quem saiba de Autoridade Marítima noutros círculos.

Tendo presentes as largas dezenas de erros e inconsistências na legislação neste âmbito é óbvio que os legisladores e os membros do Governo dominam mal a matéria; e a Armada não é alheia a tais disfunções, que ajuda a criar, e que depois explora a seu favor. O que propicia o alheamento dos MDN face à Autoridade Marítima. Só assim se explica, por exemplo e entre tantos outros, os erros de designação generalizados; as reiteradas confusões entre serviços e órgãos; os estatutos por concretizar (caso dos militarizados em geral, e dos faroleiros); ou as unidades orgânicas sem existência legal há décadas (caso dos serviços de combate à poluição do mar, ou dos grupos operacionais da PM), incluindo a falta de lei orgânica da PM há 29 anos – a única polícia sem lei orgânica!

Basta a necessidade de integrar a PM no modelo constitucional pós-1982 e de cumprir a lei para ser imperativo reformar esta política pública. Não faltam políticos a proclamar amor à democracia, o respeito escrupuloso da CRP e da lei, e o mar como desígnio nacional – mas as disfunções arrastam-se e nada fazem para as corrigir. Nem sequer reduzem as taxas e taxinhas, que oneram as atividades marítimas – e que sustentam a motivação dos oficiais da Armada que exercem funções na PM e nas capitanias dos portos.

Mas há mais razões fortes que, até cada uma por si, tornam a reforma necessária, e que já expliquei noutros textos (ver aqui, aqui e aqui):

corrigir as falhas e inconsistências da legislação;

resolver as lacunas da legislação;

eliminar os enviesamentos e até ilegalidades das práticas;

acabar com as duplicações e ineficiências de serviços e órgãos;

e aumentar a eficácia e a eficiência, pela especialização.

A Armada criou em 1992 um discurso, a narrativa das poupanças, assente nas palavras “sinergias” e, a partir de 2007, “duplo uso”, chavões que atores políticos e mediáticos perfilham e ecoam com uma chocante superficialidade. Como argumento, aquela narrativa tem a espessura intelectual de uma folha de papel. Mais: se fossem sinceros, a Armada e quem repete os chavões aplicavam sempre o mesmo critério, que dizem servir o país. Por exemplo, defendiam a fusão da GNR e da PM numa só força policial marítima, a Guarda Marítima; defendiam a fusão da Direção-Geral da Autoridade Marítima (DGAM) com a Direção-Geral de Recursos Naturais, Segurança e Serviços Marítimos (DGRM), numa Direção-Geral da Administração Marítima; e defendiam a fusão dos sistemas de busca e salvamento marítimo (SNBSM) e aéreo (SNBSA), e a subsequente integração no serviço nacional de Proteção Civil.

Hoje, há ameaças graves à segurança europeia. Por isso, é crucial que os exércitos se ocupem só da função militar, na qual são necessários e insubstituíveis, em vez de se dispersarem por funções em que não são especialistas. A dispersão é um uso ineficiente de recursos, e mostra bem que a narrativa das poupanças é só um expediente retórico.

Quando faltam políticos corajosos e seguros, a reação perante uma política pública muito enviesada e disfuncional cinge-se a uns tímidos remendos de compromisso, para mostrar que se fez algo – mudar algo para que tudo fique na mesma; foi o que sucedeu em 2002. Duas décadas depois, os poderes fácticos estão mais entrincheirados; dito isto, há mais condições e capacidades para formular e concretizar com êxito a necessária reforma.

É compreensível que qualquer ator político tenha receio de falhar, pela complexidade, ou pela resistência de poderes fácticos, e a má imprensa que eles mobilizam. Mas um novo governo tem a capacidade de marcar a agenda e iniciar reformas eficazes. Nesta política, é possível definir os objetivos com clareza e formular a reforma por fases no Programa de Governo, para que uma fase exija outra a seguir. Assim, a primeira fase consiste em:

Fixar no Programa de Governo e na sua lei orgânica a nova orgânica institucional da Administração Marítima, que absorve a Autoridade Marítima; doravante, tratar-se-á apenas das autoridades marítimas.

Tornar a Autoridade Marítima Nacional (AMN) numa função do DGAM, extinguindo o cargo e a sua inerência pelo comandante da Armada, por alteração dos DL 43/2002, 44/2002, 183/2014 e 185/2014 e revogação do DL 235/2012.

O cargo de DGAM passar a ser exercido em acumulação pelo DGRM, por alteração do DL 44/2002, com vista à posterior fusão da DGAM e da DGRM.

O cargo de Comandante-Geral da PM passar a ser exercido em acumulação pelo Comandante-Geral da GNR, por alteração do DL 248/95, para depois criar a Guarda Marítima, com chefia autónoma face à GNR e à Armada.

Eliminar a possibilidade de acumulação entre o órgão de comandante naval regional e órgãos da DGAM e da PM, por alteração do DL 185/2014 e do DL 248/95.

Atribuir a chefia do Sistema de Busca e Salvamento Marítimo a um diretor civil na dependência do MDN, alterando o DL 15/94, para depois se fundir com o sistema aéreo e se integrar no sistema nacional de Proteção Civil.
O Governo pode realizar estas alterações legislativas com um só decreto-lei, que pode ser aprovado na primeira reunião do Conselho de Ministros já com o Governo em plenitude de funções, tornando inequívoca a vontade política de reforma, e os seus fins.

Nada disto impede que os exércitos apoiem serviços civis, dentro das suas capacidades sobrantes e com a devida compensação pelos recursos gastos, nos termos da CRP e da Lei de Defesa Nacional e outras, como a Armada já faz com a Polícia Judiciária.

Claro que haverá dificuldades, como imprevistos e bloqueios pelos poderes fácticos. Mas a direção clara para todos, pelo impulso da reforma, e o papel central dos dirigentes que adquirem novas responsabilidades – que são quem tem as melhores condições para promover a integração dos serviços que passaram a chefiar – podem criar a dinâmica motivacional e de recursos para concretizar com êxito a reforma da Autoridade Marítima.

Adiar as reformas necessárias, ainda por cima sem boas razões e por má política, afasta os cidadãos do Estado de Direito e da Democracia. Por se afastarem, não são, nem devem ser chamados, irracionais.

A reforma é imperativa. Há quem quer. Há quem sabe. Só falta que quem pode, tenha coragem – muita coragem! – e faça.