Infelizmente para os EUA e para o mundo (dada a importância dos EUA para a economia global), nas eleições presidenciais norte-americanas não é só Kamala Harris quem defende políticas económicas desastrosas. Ainda que o programa populista de Donald Trump seja no plano económico interno menos danoso do que o programa socialista de Kamala Harris, o proteccionismo de Trump é muito preocupante pela ameaça que representa para o comércio internacional e para a ordem geopolítica.

É fácil no contexto de uma campanha eleitoral perdermo-nos na espuma dos dias, mas a verdade é que o ressurgimento em força das ideias protecionistas contra o comércio livre já tem pelo menos uma década. De facto, já na campanha para as presidenciais de 2016, Trump foi claro e assertivo na defesa do proteccionismo. E foi de tal forma eficaz a interpretar o ar dos tempos nessa matéria que levou atrás da sua agenda proteccionista não só o Partido Republicano mas também o próprio Partido Democrata.

Os mesmos Democratas que em tempos criticaram as propostas proteccionistas de Trump – como Joe Biden – mantiveram e em vários casos aumentaram as tarifas e restrições comerciais por ele aplicadas. E também por isso, ainda que o protecionismo tenha um posicionamento mais saliente no discurso de Donald Trump, não é infelizmente de esperar que Kamala Harris possa ser melhor nem sequer nessa importante matéria.

Mas importa tentar ir além da referida espuma dos dias e recentrar ideias sobre o comércio livre – um tema fundamental não só para promover a prosperidade e combater a pobreza a nível global mas também para salvaguardar a paz mundial. Um factor importante para compreender os tempos sombrios que vivemos nesta matéria foi a crescente invocação ao longo das últimas décadas do “comércio livre” para defender agendas e interesses que pouco tinham a ver com a liberdade económica. De facto os tratados e acordos de livre comércio foram crescentemente incorporando cláusulas rentistas, tratamentos preferenciais e favoritismos vários que acabaram por os desgastar, perverter e descredibilizar.

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Na mesma linha, a apropriação retórica à direita do tema do “comércio livre” pelo movimento neoconservador foi também altamente danosa. Como desenvolvi em artigo recente, a captura da direita moderada pela agenda revolucionária dos radicais neoconservadores com ligações próximas ao complexo militar-industrial descredibilizou toda a sua plataforma tradicional (incluindo a defesa do comércio livre) e abriu espaço aos populismos — incluindo na sua dimensão proteccionista.

No meio das discussões sobre comércio internacional aparece frequentemente a questão da China. As preocupações com a China são legítimas e necessárias, mas importa não permitir que sejam o espantalho agitado para justificar o fechamento das economias ocidentais e a repetição de alguns dos erros mais graves e perigosos do século passado. Como bem assinalou Telmo Azevedo Fernandes num excelente artigo publicado aqui no Observador (O Rust Belt , a China e a “Nova Direita”):

“A China é, pois, um espantalho largamente exagerado para justificar políticas nacionalistas e neo-mercantilistas que responde de forma populista a exigências de sindicatos poderosos, mas também facilita a captura legislativa por interesses corporativos rentistas. O proteccionismo comercial e a “reindustrialização” centralmente desenhada pelo Estado são contraproducentes porque desincentivam o progresso tecnológico, impedem melhorias de produtividade, criam desequilíbrios na alocação de recursos e travam o crescimento económico que, em última instância, coloca em risco a própria segurança nacional, já que esta depende de haver suficientes recursos disponíveis para a defesa. As democracias devem habituar-se a lidar com transformações económicas sem simplificar um mundo demasiado complexo identificando um inimigo externo, neste caso a China, como origem de todos os desafios sociais e, sobretudo, sem promover atitudes políticas tendencialmente favoráveis à autarcia que trazem profundas e persistentes consequências negativas à economia, afectando principalmente os menos afortunados. Se é certo que o socialismo empobrece, é triste verificar que nos últimos tempos as forças políticas de Direita nos EUA, na Europa e em particular em Portugal se têm esquecido de verdades económicas básicas e infletido numa deriva populista estatista.”

Em 2017, num ensaio conjunto de que fui co-autor com Carlos Guimarães Pinto (“Comércio livre e proteccionismo: lições geopolíticas”, Nova Cidadania 62 – lamentavelmente não disponível online), explicamos as razões pelas quais o comércio internacional infelizmente reúne condições propícias para se constituir como inimigo externo para forças populistas:

“Criar um inimigo externo é uma reconhecida estratégia empregue por políticos populistas para atrair e inflamar os seus apoiantes. O comércio internacional é um bom candidato a servir de inimigo externo por dois motivos principais. Primeiro, porque é muito fácil identificar quem fica a perder com o comércio internacional, mas muito difícil de identificar quem ganha e quantificar esses ganhos, não obstante serem muitíssimo mais avultados do que as perdas. Enquanto as perdas se encontram concentradas num conjunto de empresas e sectores, os ganhos estão dispersos por toda a população e, mesmo sendo muito maiores, são mais difíceis de contabilizar. Em segundo lugar, porque organizar-se politicamente contra um inimigo externo é muito mais fácil do que assumir que há problemas internos que precisam de ser resolvidos.”

Além das implicações nefastas para a prosperidade económica e para o bem-estar das populações implicações, o protecionismo acarreta também significativos riscos geopolíticos. Como desenvolvemos no já referido ensaio, que infelizmente se tem revelado premonitório:

“Apesar de ser um inimigo imaginário, lutar contra o comércio internacional acarreta perigos assustadoramente reais. Um efeito positivo de curto prazo em algumas indústrias protegidas da concorrência pode aumentar o apoio político a medidas protecionistas, dando incentivos à sua expansão. Se os parceiros comerciais reciprocarem, toda a economia sofrerá danos, dando novos incentivos políticos ao protecionismo e consequente resposta dos parceiros comerciais. Uma espiral protecionista gera assim efeitos económicos e políticos imprevisíveis. Uma vez destruídos os laços comerciais, diminui-se a interdependência económica entre nações, tornando os laços políticos ainda mais frágeis. Como o século passado nos ensinou, as consequências geopolíticas de restringir o livre comércio internacional são difíceis de prever e podem ser verdadeiramente catastróficas. A história sugere também que o comércio livre (mesmo que apenas parcialmente livre) demora muito tempo a negociar e construir, enquanto a sua destruição pode acontecer num ápice. Os anos 30 do século passado deram-nos uma valiosa e dolorosa lição sobre os benefícios do comércio livre. Esperemos que não tenhamos que reaprender a mesma lição este século.”

Recuperar e revitalizar a causa do (genuíno) comércio livre a nível internacional deverá ser uma das principais prioridades para todos os defensores da liberdade e da paz.

P.S.: Uma nota final para assinalar a feliz coincidência temática de ter lugar hoje, 25 de Setembro, às 18h30 no Instituto de Estudos Políticos da Universidade Católica o seminário “Economic freedom and public policy: contemporary challenges“, com Niclas Berggren (Research Institute of Industrial Economics (IFN), Sweden; Prague University of Economics and Business, Czechia e organizador do recentemente publicado Handbook of Research on Economic Freedom, João Borges Assunção (Católica Lisbon School of Business & Economics) e Inês Gregório (Instituto de Estudos Políticos da Universidade Católica Portuguesa).