“Não é possível discutir racionalmente com alguém que prefere matar-nos a ser convencido pelos nossos argumentos”, Karl Popper

O embondeiro é uma árvore de grande porte que atravessa gerações, símbolo de resistência e ancestralidade no continente africano. Ela marca a paisagem de Moçambique, mas também de Angola e Cabo Verde, Tanzânia, Botswana, Namíbia, Zimbabué ou África do Sul. As suas raízes espalham-se profundamente na terra, e o seu tronco robusto parece inabalável, mesmo em tempos de seca. Na obra de Mia Couto, o embondeiro transcende a sua dimensão física: é um ser que carrega a história e a memória de um povo, testemunha silenciosa dos eventos que marcam as vidas daqueles que vivem sob sua sombra. Simboliza resistência contra a opressão colonial e funciona como refúgio para personagens fatigadas pelo peso das suas lutas. É um espaço de descanso, introspeção e proteção, um elo entre o Céu e a Terra, que conecta os vivos com os seus ancestrais e preserva a identidade de uma comunidade.

O embondeiro quando morre, mantém-se erguido, desafiando a passagem do tempo. Essa imponência, seguramente romântica, acaba por ser ilusória: uma árvore morta, embora que ainda aparente força, é um perigo iminente. O seu tronco seco pode desabar destruindo tudo à sua volta. Retirá-lo exige paciência, inteligência e respeito. Primeiro cortam-se os ramos, depois o tronco, e por fim é preciso enfraquecer as raízes que se entrelaçam profundamente no solo.

A morte massiva dos embondeiros em África e a sua inspiração como metáfora para as transições políticas visitou-nos em Agosto de 2022, quando em conversa com Adalberto da Costa Júnior, candidato da UNITA às eleições presidenciais angolanas, pensávamos como se deveria desmontar a fraude eleitoral em curso no seu país (reflexão que deu lugar à publicação de um texto neste jornal). Em Angola, o povo (que é sempre soberano no seu voto) quis evitar – até ver – banhos de sangue, preferindo continuar a desmontar pacientemente o regime nas suas fundações e raízes. Já em Moçambique o embondeiro da FRELIMO está a ruir estrondosamente, causando na sua queda morte, sofrimento e dor.

A metáfora política do embondeiro, pensada para Angola, ganha uma nova semântica, particularmente dolorosa, quando lida à luz da realidade moçambicana atual. Desde as eleições gerais de Outubro de 2024, Moçambique é palco de uma crise que expõe o regime da FRELIMO como um embondeiro morto, resistente na aparência, mas profundamente esgotado. A sua base popular secou, e a tirania tornou-se o último recurso de um partido que recusa ceder espaço à democracia, desagregando na sua morte os pilares da comunidade.

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Os resultados eleitorais apresentados pelo regime, sem pudor ou vergonha, atribuíram 71% dos votos – sim, leram bem, 71% – a Daniel Chapo: todos os números foram imediatamente contestados pela população moçambicana e por observadores internacionais. Denúncias de fraude eleitoral, incluindo manipulação de resultados ao nível das mesas de voto, foram amplamente documentadas. Venâncio Mondlane, principal rosto da contestação ao status quo, declarou publicamente que o povo moçambicano votou pela mudança, mas que essa vontade está a ser esmagada pelas engrenagens de um regime que prefere triturar a liberdade, o país e todo o seu Povo, a aceitar a derrota.

As ruas de cidades e aldeias de Moçambique tornaram-se cenários de resistência e repressão. Manifestações pacíficas convocadas pela oposição têm sido esmagadas com brutalidade pelas forças de segurança. A violência tem dado lugar a violência, levando à deserção dos governantes, há muito em parte incerta com medo de um povo que supostamente os elegeu – com 71%. A repressão inclui restrições ao acesso à internet e bloqueios de redes sociais, numa tentativa de silenciar vozes dissidentes. Mas não apenas. O regime não tem hesitado em usar violência letal: são já centenas os mortos, milhares os feridos, neles se incluindo idosos, mulheres e crianças, e centenas as detenções.

Entre os mortos está Elvino Dias, advogado de Mondlane, e Paulo Guambe, mandatário nacional do Podemos, brutalmente assassinados numa emboscada. Alguns meses antes, na rede social Facebook, Elvino Dias antecipou a sua própria morte, preferindo ainda assim não fugir. As mortes e a repressão têm tido um efeito inverso ao que a FRELIMO desejaria: em vez de retirarem força aos contestatários, têm servido para ampliar a base de apoio e mostrar ao mundo a fraude em curso, tendo levado já a posições diplomáticas fortes da comunidade internacional, incluindo os Estados Unidos, o Reino Unido, o Canadá, a Noruega e a Suíça, condenando a escalada da violência contra civis e instando o governo moçambicano a garantir que as forças de segurança protejam a população.

Karl Popper, na sua obra A Sociedade Aberta e Seus Inimigos, popularizou uma linha de pensamento bem trabalhada por filósofos como Locke, Tocqueville ou Schumpeter: a função mais essencial da democracia é patrocinar mudanças políticas sem violência. O principal valor da democracia residirá, assim, em possibilitar a mudança através de mecanismos institucionais e pacíficos, evitando a violência que inevitavelmente surge quando esses falham ou são corrompidos.

Popper foi também muito claro, porém, quando afirmou que “não é possível discutir racionalmente com alguém que prefere matar-nos a ser convencido pelos nossos argumentos”. A FRELIMO já demostrou à saciedade não estar disponível para permitir qualquer transição pacífica de Poder. E, por esta vez, uma parte muito significativa da sociedade moçambicana está disposta a pagar, se for necessário com a sua vida e o seu sangue, para recuperar a soberania popular. Moçambique, precisa, por isso, que a comunidade internacional – que, aliás, financia e sustenta com ajudas permanentes um país que está falido – se posicione sem receios para travar os banhos de sangue e para assegurar a implementação urgente de mecanismos institucionais, transparentes, eficazes e pacíficos para apuramento da verdade eleitoral, seja ela qual for. O povo moçambicano espera que a comunidade internacional – a começar por Portugal – contribua para uma transição pacífica e democrática, antes que o país precise renascer das cinzas.

Desmontar um regime enraizado, mas morto é um processo metódico. É preciso paciência e inteligência, mas também coragem. Moçambique não aguenta a lógica contemplativa da comunidade internacional e o receio de quebrar politicamente corretos que há muito não fazem sentido. Passados cinquenta anos não há quaisquer riscos de regressos ao passado, sendo o discurso do papão colonial usado apenas por maniqueísmo por elites africanas corruptas como forma de perpetuar as suas tiranias sem o desconforto da pressão diplomática. O povo, as pessoas comuns, as sociedades civis emergentes em Moçambique, mas também em Angola, Cabo Verde, e em muitos outros países africanos, são hoje cosmopolitas, aspiram viver em sociedades abertas, tais como Karl Popper as pensou, com instituições fortes, e em sã parceria com os países com quem ao longo do tempo construíram afinidades. O futuro de Moçambique é, hoje, um espaço vazio deixado vago pela queda de um embondeiro que teima em perpetuar-se na paisagem, secando tudo à sua volta. Cabe-nos ajudar os moçambicanos para que possam, como é seu desejo, remover a árvore morta e garantir que o espaço vago é preenchido pela democracia, pela liberdade, pela justiça, devendo esta ser uma aspiração comum de povos e pessoas que, nas suas diferenças, nunca deixaram de sonhar na mesma língua.

A cada dia que passa, mais sangue é derramado, e o futuro democrático do país torna-se cada vez mais incerto e irreversível. Façamos, hoje, para que as nossas omissões não nos envergonhem no futuro.