De acordo com os dados disponíveis, o número de médicos, enfermeiros e farmacêuticos por 100 mil habitantes em Portugal tem vindo a crescer nas últimas décadas. Nunca houve tantos médicos, enfermeiros e farmacêuticos como agora. Sendo assim, como é que se explica que haja tantos problemas no Serviço Nacional de Saúde devidos à falta de médicos? São as urgências que fecham, são os médicos de família por atribuir, são os serviços hospitalares sem o número mínimo de especialistas para funcionar… Como é que chegámos aqui quando há cada vez mais médicos?

Há algumas questões a ter em conta. Provavelmente, os dados existentes contêm algumas imprecisões e sobrestimam o número de médicos; devido às crises económicas e às más condições de trabalho, terá ocorrido alguma emigração de médicos, sobretudo para outros países europeus. No caso específico do SNS, outro problema adicional poderá ser a movimentação de alguns médicos para o setor privado. Na prática, estes efeitos são relativamente secundários e não impedem que o número de médicos no país e no SNS tenha vindo a crescer.

Não é que os médicos trabalhem menos, bem pelo contrário. Há cada vez mais notícias sobre o extremo cansaço e níveis de “burn out” na classe médica em Portugal. O que se passa é bem mais insidioso: os médicos trabalham cada vez mais, mas com cada vez menos resultados, ou seja, têm uma produtividade em declínio. A raiz do problema não está nos médicos, está no sistema de saúde e na forma como este usa o seu trabalho.

Uma parte dos problemas começa com má gestão nas unidades de saúde, descoordenação de horários e mau planeamento das escalas de serviço. Mas o grosso dos problemas está naquilo que se pede aos médicos para fazer, ou seja, nas tarefas onde têm de gastar o seu tempo e energia. Um médico é um recurso muito caro, muito especializado e que deve ser usado criteriosamente, preferencialmente em funções onde seja insubstituível. Em Portugal, muito do tempo de trabalho dos médicos é gasto em tarefas que poderiam ser delegadas. Por exemplo, um sistema de saúde moderno necessita de registos extensos e de boa qualidade, mas é um desperdício enorme o tempo que os médicos gastam a digitar em teclados e a “lutar contra” os sistemas informáticos e as suas falhas, registos esses que outros grupos profissionais poderiam fazer. Atualmente, numa consulta típica, o médico passa mais tempo a escrever no computador que a interagir com o doente! Se libertarmos os médicos do peso excessivo destas tarefas para se poderem concentrar nas tarefas que só eles podem desempenhar, teremos o potencial para um grande aumento da produtividade.

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Para conseguir maior produtividade do esforço dos médicos há dois grandes passos a dar. O primeiro será utilizar enfermeiros de forma mais intensa. Os melhores sistemas de saúde do mundo, como por exemplo os dos países do norte da Europa, utilizam proporcionalmente mais enfermeiros que o sistema português. Isso significa que as atribuições e competências dos enfermeiros são mais latas nesses países que no nosso. Um exemplo que tem sido referido a propósito das maternidades em Portugal é que nos países mais avançados os partos sem risco elevado são feitos sobretudo por enfermeiros, sendo o papel do médico de monitorização e de recurso de retaguarda.

No entanto, atribuir mais competências aos enfermeiros é uma estratégia com um potencial positivo, mas limitado, para resolver o problema fundamental da baixa produtividade do trabalho dos médicos. Ao longo dos anos, os enfermeiros conquistaram um estatuto autónomo e independente face aos médicos. O que o sistema de saúde precisa é mesmo de “assistentes clínicos”, ou seja, de um grupo profissional cuja função seja alavancar a produtividade dos médicos. Não se trata de um trabalho de secretaria, esse já há quem o faça, mas de um trabalho de aligeirar as tarefas do médico, ocupar-se dos registos, etc., tudo num contexto em que, como profissionais de saúde, tais assistentes terão de estar integrados nas obrigações éticas e nos níveis de acesso à informação clínica e pessoal que vemos noutros profissionais de saúde.  A formação de “assistentes clínicos” pode ser feita de forma relativamente rápida, económica, como acontece noutros países desenvolvidos. A sua utilização no sistema de saúde tem um grande potencial para melhorar a eficiência do trabalho médico, reduzindo custos e aumentando a qualidade de serviço dos cuidados de saúde.

Um ponto de partida para a introdução destas correções poderia ser a realização de experiências em várias unidades de saúde, inspiradas pelo que se faz noutros países. Quem sabe, talvez as unidades de saúde do setor privado apostem neste tipo de inovação institucional e queiram tomar a dianteira neste processo de melhoria do sistema de saúde em Portugal.