No rescaldo das eleições autárquicas, vem a propósito publicar um comunicado de quatro paróquias de uma diocese portuguesa que, depois de um ano de penosa orfandade, vive agora a gozosa experiência de receber o seu novo Bispo.
Este “Comunicado”, que pomposamente se intitula “muito importante”, é particularmente grave porque, segundo o Papa Francisco, “o clericalismo é uma perversão da Igreja” (Vatican News, 13-8-2018). Não está em causa a boa fé e zelo pastoral do seu autor, por quem se expressa a maior consideração pessoal, mas os termos desta ingerência na ordem política.
O “Comunicado muito importante”, qual solene bula papal, proclama, ex cathedra, que “a Igreja mantém a neutralidade em relação a qualquer candidatura política” (a negrita é sempre do texto original). Não obstante o tom quase dogmático desta afirmação, a referida “neutralidade” contradiz o magistério da Igreja e o Papa Francisco, que disse que a política “é uma das formas mais preciosas de caridade, porque busca o bem comum” (Fratelli tutti, nº 180).
Certamente, a Igreja não se deve imiscuir em questões partidárias, mas não é neutra em matéria política. Com efeito, o magistério pontifício, pela voz do Papa Pio XI, não só condenou o fascismo (Non abbiamo bisogno, 29-6-1931), como também o nazismo (Mit brennender Sorge, 14-3-1937) e o comunismo (Divini Redemptoris, 19-3-1937). Desde sempre, a Igreja está empenhada na consecução do bem comum, de acordo com os princípios da sua Doutrina Social. Talvez esta seja, por sinal, a característica mais relevante do pontificado de Francisco que, em detrimento até de matérias mais espirituais, tem dado atenção preferencial aos temas humanitários: os refugiados, os sem-abrigo, a imigração, etc. São João Paulo II foi, por sua vez, o principal artífice da libertação da Polónia e do Leste europeu, depois de quase meio século de ditadura comunista.
O comunicado diz ainda que “Aos Sacerdotes é expressamente proibido assumirem cargos políticos ou a [sic] manifestarem, publicamente, alguma ideologia ou agrado/desagrado por alguma candidatura, sobretudo no decorrer das Celebrações Litúrgicas”. Sem dúvida, até porque, de acordo com a Lei Orgânica 1/2001, de 14 de Agosto, não são elegíveis, para os órgãos das autarquias locais dos círculos eleitorais onde exercem funções, “os ministros de qualquer religião ou culto”. Paradoxalmente, este “Comunicado muito importante” é um acto de natureza essencialmente política, de que o seu autor, por coerência com o que muito bem entende ser a sua condição sacerdotal, se deveria ter abstido, segundo a sua própria e certíssima opinião. Tão político é aproveitar um acto de culto, para fazer campanha eleitoral, como servir-se do boletim paroquial, para proibir que centenas de cristãos se candidatem a cargos autárquicos.
De facto, o “Comunicado muito importante” determina que, “para que a neutralidade da Igreja seja mais visível e concreta [sic], não devem os membros da Fábrica da Igreja, Confrarias ou Direção e Conselho Fiscal do Centro Social Paroquial integrar qualquer lista que concorre a eleições ou ocupar cargos políticos”. Também “aos Ministros Extraordinários da Comunhão” se exige “que se abstenham de qualquer movimento público de apoio a qualquer candidato”. Ou seja, de uma penada proíbe-se, a todos os membros da Fábrica da Igreja, das Confrarias (que podem ter centenas de irmãos), da Direção e Conselho Fiscal do Centro Social Paroquial e aos ministros extraordinários da Comunhão de quatro paróquias minhotas, não só o direito constitucional de participarem, como candidatos, nas eleições autárquicas, como também o dever de ocuparem os cargos políticos municipais para que sejam eleitos!!
Deste jeito, são tidos como politicamente inábeis para concorrer às eleições autárquicas, e para ocupar cargos na administração municipal, os católicos que desempenhem funções em estruturas paroquiais. Mas, se é “para que a neutralidade de Igreja seja mais visível e concreta”, porque não retirar, pura e simplesmente, o direito de voto a todos os católicos?! Se um autarca, por ser católico com responsabilidades paroquiais, compromete a proclamada “neutralidade” da Igreja, porque não proibir também de se candidatarem a qualquer cargo político os membros do coro, os acólitos, os leitores, os catequistas e os escuteiros?! Ou será que há cristãos de primeira, como seriam os ditos católicos inelegíveis, e cristãos de segunda, que seriam os restantes leigos, reduzidos à insignificância política dos que não são reconhecidos, nem sequer pelo seu pároco, como Igreja, e, por isso, não comprometem a sua “neutralidade” institucional?! Não é esta, afinal, uma visão mais política do que eclesial do povo de Deus?!
O solícito pastor, que neste seu excesso de zelo lembra vagamente o ultramontano Don Camilo, de Giovanni Guareschi, não se fica por uma simples admonição: ameaça fulminar, com a suspensão a divinis, quem não acate esta sua ordem “muito importante”! Com efeito, os desgraçados fiéis que “optarem por integrar alguma corrida eleitoral [sic!], devem suspender as suas funções nos cargos paroquiais (Fábrica da Igreja, Confrarias ou Centro Social)”!
Ora, ameaçar com a demissão quem legitimamente exerce os seus direitos políticos, não só é uma prática totalitária, como também inconstitucional, em virtude do artigo 48º, nº 1 da Constituição. Mais ainda, segundo o artigo 171º da Lei Orgânica 1/2001, é crime, punido com pena de prisão de dois anos, ou multa de 240 dias, “constranger qualquer cidadão a não se candidatar, ou a desistir da candidatura”.
Ao contrário do que supõe este “Comunicado muito importante”, a missão da Igreja, em relação aos actos eleitorais, não é a de antidemocraticamente impedir a candidatura e eleição dos leigos, mas fomentar a sua livre e responsável intervenção, recordando-lhes que devem ser coerentes no exercício do seu direito/dever de participação política, ou seja, devem manifestar o seu apoio às propostas coincidentes com a doutrina da Igreja (justiça social, opção preferencial pelos pobres, etc.), bem como o seu repúdio pelas iniciativas que contradizem os irrenunciáveis princípios do humanismo cristão (aborto, eutanásia, etc.).
A terminar, expressam-se votos que parecem dirigidos, não apenas às quatro paróquias a que diz respeito o boletim em que foi publicado o “Comunicado muito importante” (e, na verdade, irritante), mas a toda a diocese, senão mesmo a todo o orbe: “Por fim, peço que o objetivo de todos os que concorrem seja o bem do povo e a harmonia entre todos, e exorto a uma campanha construtiva e limpa, promovendo o confronto de ideias e nunca das pessoas. Estejam certos da boa, saudável e construtiva colaboração das quatro paróquias que me estão confiadas.”
Não compete aos párocos zelar para que uma campanha eleitoral seja “construtiva e limpa” [sic], mas defender a liberdade e os direitos cívicos dos cristãos. Neste sentido, a Comissão Nacional Justiça e Paz, da Conferência Episcopal Portuguesa, apelou “ao voto consciente e ao exercício da cidadania activa” nestas eleições autárquicas.
Nenhum padre tem autoridade, eclesiástica ou civil, para proibir a candidatura, ou eleição, de nenhum fiel para qualquer cargo da administração pública, nem pode fazer depender de condicionalismos políticos o exercício de funções paroquiais, a não ser que o compromisso político assumido seja incompatível com a fé cristã. Pelo contrário, é missão do pároco formar e animar os leigos para que, com responsabilidade pessoal, se empenhem na política, também pela sua libérrima intervenção.
Ao autor do comunicado, ou à suprema autoridade diocesana, incumbe agora reparar, como é de justiça, o dano causado, bem como reconhecer, expressa e formalmente, aos fiéis destas paróquias, os direitos de cidadania que lhes foram ilegítima e ilegalmente negados pelo respectivo pároco.
O majestático oferecimento da “boa, saudável e construtiva colaboração das quatro paróquias”, pressupõe que o seu pároco se considera seu dono e senhor, não seu servo. Os que têm do ministério sacerdotal uma visão política, dificilmente compreendem o seu carácter de serviço, que os Papas, para si mesmos, sempre reclamaram, identificando-se, simplesmente, com o mais excelso título à face da Terra: servo dos servos de Deus.
P.S. Para informação dos leitores, transcreve-se, literalmente, o
“COMUNICADO MUITO IMPORTANTE
Em ano de eleições autárquicas e em tempo de preparação das listas concorrentes, é dever do pároco comunicar o seguinte: a Igreja mantém a neutralidade em relação a qualquer candidatura política. Aos Sacerdotes é expressamente proibido assumirem cargos políticos ou a manifestarem, publicamente, alguma ideologia ou agrado/desagrado por alguma candidatura, sobretudo no decorrer das Celebrações Litúrgicas.
Para que a neutralidade da Igreja seja mais visível e concreta, não devem os membros da Fábrica da Igreja, Confrarias ou Direção e Conselho Fiscal do Centro Social Paroquial integrar qualquer lista que concorre a eleições ou ocupar cargos políticos. Se, entretanto, optarem por integrar alguma corrida eleitoral, devem suspender as suas funções nos cargos paroquiais (Fábrica da Igreja, Confrarias ou Centro Social). Da mesma forma, peço aos Ministros Extraordinários da Comunhão que se abstenham de qualquer movimento público de apoio a qualquer candidato, além do que acima expus.
Por fim, peço que o objetivo de todos os que concorrem seja o bem do povo e a harmonia entre todos, e exorto a uma campanha construtiva e limpa, promovendo o confronto de ideias e nunca das pessoas. Estejam certos da boa, saudável e construtiva colaboração das quatro paróquias que me estão confiadas.”