Há cerca de dois anos publicámos no Observador um texto sobre a lentidão dos concursos públicos, que então atribuímos, não principalmente à complexidade dos procedimentos concorrenciais – que não é diferente nos restantes Estados da UE – mas à lassidão, pouca organização e incapacidade para tomar decisões ou assumir responsabilidades por parte dos dirigentes das entidades públicas. A incapacidade ou falta de vontade de cumprimento de prazos pela parte pública, seja na administração central ou local, é algo com que nos conformamos e que pode constar eternamente da lista dos nossos “problemas estruturais”.

Se este modo de viver das instituições públicas – já é de facto um modo de vida – resiste a todos os Simplex e outras inovações informáticas, a solução tem sido a de empurrar para a esfera do particular as obrigações que o Estado não consegue cumprir no tempo em que o deveria fazer.

Um bom exemplo disto – mais um – é a recente alteração ao Código dos Contratos Públicos que entrou em vigor no passado dia 2 de Dezembro. E o tema é este: regra geral, nas empreitadas de obras públicas, é o contraente público, por si ou através de terceiro que para esse efeito contrata, que elabora o Projecto de Execução da obra que pretende adjudicar e só depois a submete a concurso público para a construção. Até agora, só excepcionalmente era possível entregar ao próprio empreiteiro a actividade conjunta da concepção e construção do empreendimento em causa. E convenhamos que é compreensível esta restrição. Com a prudência exigida a quem dispõe de dinheiro público, o contraente deve definir até ao pormenor as características da construção que vai contratar – e isso só é possível se o Projecto de Execução for originário da parte pública. Uma vez recebida a construção acabada, é a entidade pública que a vai utilizar e será esta e os utentes, que sofrerão as consequências da maior ou menor qualidade do Projecto de Execução em termos de durabilidade, funcionalidade, conforto, etc. A este facto não é alheio que o recurso excepcional à solução de entregar o Projecto de Execução e a construção à mesma entidade empreiteira ocorra quase sempre quando a essa entidade vai ser também entregue a concessão do serviço, uso e manutenção do empreendimento. Neste caso em grande medida, a qualidade da construção, sua durabilidade, funcionalidade e conforto vai cair em cima do concessionário/construtor, o que constitui um bom motivo para que o seu Projecto de Execução não seja o que costumamos designar como o barato que sai caro. Isto é medianamente entendível, estamos em crer.

O Decreto-Lei 78/2022 vem alargar a todas as obras a possibilidade de o contraente público recorrer a este regime de entregar o projecto e a construção ao mesmo adjudicatário, agora de modo normal e sem que seja necessário fundamentar essa necessidade ou conveniência.

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O preâmbulo do Decreto-Lei, entende esta possibilidade como uma medida de aceleração e simplificação procedimental, o que só pode ser entendido como uma profissão de fé em forma de decreto-lei, pois a experiência desde tipo de procedimento desde a última década do século XX, sempre que foi utilizada, nunca foi mais célere, nem mais simples e a qualidade da construção, fosse em habitação social ou em hospitais, ficou muito aquém do que seria exigido para a função a que se destinavam.

No modelo tradicional, para estas empreitadas de concepção-construção, a entidade pública patenteia aos concorrentes aquilo que a lei designa como um “Programa Preliminar” e será com base neste Programa Preliminar que o concorrente vencedor do concurso desenvolverá posteriormente as restantes fases do projecto, ou seja, o Programa base; o Estudo Prévio; o Anteprojecto e o Projecto de Execução. O Programa Preliminar é um documento “ligeiro” que define os objectivos e as características da obra; dados sobre localização; elementos topográficos e cartográficos; dados básicos, estimativa de custos e prazos. É, por conseguinte, um documento que qualquer contraente público, mesmo de pequena dimensão elabora, sem recurso a entidades externas.

Acontece que no Decreto-Lei 78/2022, o documento a patentear a concurso pelo contraente público não é o Programa Preliminar, mas o Estudo Prévio, ou seja, dois níveis de pormenorização mais acima do Programa Preliminar. O Estudo Prévio já tem de conter obrigatoriamente: Memória Descritiva e Justificativa; plantas, alçados, cortes e perfis; dimensionamento aproximado; definição geral dos processos de construção; análise prospetiva do desempenho térmico, energético e acústico, entre outras valências.

Ora o que é válido em termos de capacidade interna dos contraentes públicos para elaborar o Programa Preliminar já não se verifica para o Estudo Prévio, que assim terá de ser solicitado a terceiros através de um procedimento intermédio. Então, onde se encontra a celeridade e a simplificação, que são os objectivos confessados no preâmbulo da lei?

Fica-nos a fundada sensação de que este regime especial se destina a entregar o Projecto de Execução em conjunto com a construção a determinados executantes, em procedimentos lançados por entidades públicas que têm meios e capacidades para internamente evitarem os procedimentos intermédios para a elaboração do Estudo Prévio. Resta ficarmos com esperança de que não sejam os futuros adjudicatários a “ajudar” essas entidades a elaborar o Estudo Prévio…

A Ordem dos Arquitectos chamou a atenção para que uma generalização do recurso a este procedimento implicará ausência de escrutínio e de acompanhamento das entidades públicas ou até a perda de qualidade nas obras públicas, bem como o facto de privilegiar poucas empresas nacionais.

Seja como for, os projectos deverão sempre de ser elaborados pelos projectistas, sejam eles engenheiros ou arquitectos. O que difere é se, pela qualidade do seu trabalho, estes profissionais vão responder perante a entidade pública ou perante o empreiteiro. Com esta lei, não restam dúvidas de quem é que o governo preferiu.