Noticiava há dias um meio de comunicação social que um determinado município havia contratado por ajuste directo, ao longo de uma década, a sogra, o marido, o genro, o filho, a nora e o enteado de adjuntos ou assessores do titular do cargo autárquico. Contactado o município, este respondeu com a explicação habitual, ou seja, que cumpriu a legislação em vigor e que os “procedimentos que precederam a celebração dos contratos foram desencadeados no cumprimento das normas legais aplicáveis”. Provavelmente ambas as afirmações são verdadeiras: foram contratadas entidades cujos proprietários ou gestores tinham estas relações familiares e a autarquia cumpriu todas as normais legais aplicáveis. Então porque é isto uma notícia?

Tudo se reduz afinal a saber se são ou não cumpridas as regras da contratação pública quanto a concorrência e transparência, devendo realçar-se que essas normas, em Portugal, não podem violar as regras comunitárias. Quando ocorrem certos casos, que, de modo flagrante para o observador comum, parecem resultar de coincidências algo assombrosas, é natural que se levantem dúvidas, sobre algumas adjudicações.

Mas estas dúvidas, apesar de legítimas, podem resultar de um insuficiente conhecimento das leis de contratação pública, o que também se afigura normal, pois trata-se de matéria algo complexa e que, diga-se, o poder legislativo contribuiu regularmente para tornar ainda mais opaca, ao invés de a simplificar como era seu dever.

Muitas vezes é afirmado e publicado, que o ajuste directo é um procedimento excepcional. Não é. Trata-se de um procedimento normal, cujas regras estão definidas na lei. O recurso a esta figura jurídica ou, melhor dito, a este procedimento de contratação, é que está limitado. E limitado como? Limitado pelo valor do contrato e nada mais. Se uma entidade pública ou similar – designada na lei como “entidade adjudicante” – pretender contratar uma prestação de serviços ou fornecimento de bens, pode escolher discricionariamente a pessoa singular ou colectiva que entender, desde que o valor desse contrato não ultrapasse 20.000 Euros. Claro que a entidade escolhida tem de ter qualificação para a função para a qual é contratada, mas se é evidente que não se pode contratar um economista para fazer medicina no trabalho, já se pode contratar por ajuste directo até 20.000 Euros qualquer entidade para fornecer toalhas ou lençóis importados da China, ainda que essa entidade não tenha qualquer experiência em atoalhados ou até tenha sido legalmente constituída uns dias antes de lhe ter sido adjudicado o fornecimento. Até um cego, sem ofensa, consegue ver este filme, mas isto é perfeitamente legal.

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Quando a empresa de atoalhados contratada por ajuste directo – portanto sem concorrência e sem comparação de preços com outros fornecedores – por acaso até tem, como proprietário, um dirigente concelhio do partido político do presidente da autarquia, um familiar de alguém membro do gabinete seja de um autarca, seja da administração de um instituto público, etc, é natural que se pergunte, se havia tal escassez de fornecedores de atoalhados da China, de tal modo que não havia outro remédio que adjudicar – repete-se sem comparação de preços – logo por coincidência à empresa do dito dirigente concelhio ou ao familiar de um colaborador próximo.

Como esse ajuste directo não poderia repetir-se eternamente, porque a lei fixa um limite para os valores acumulados deste tipo de adjudicação, o que ocorria em muitos casos, era o seguinte: quando essa empresa de atoalhados já não poderia mais ser contratada por ajuste directo, o mesmo proprietário cessava a actividade dessa empresa e constituía outra como mesmo propósito, e passava esta a ser contratada por ajuste directo, para continuar o fornecimento dos ditos atoalhados e assim sucessivamente.

Com uma alteração na lei dos contratos públicos em 2021, o legislador veio introduzir uma norma no sentido de evitar que situações deste teor se repetissem. Desde 2021, não podem ser convidadas em ajustes directos entidades especialmente relacionadas com outras que já estariam impedidas de ser convidadas, não bastando portanto que a entidade seja outra, mas não pode ter como sócios ou gerentes, pessoas ligadas às entidades que já não poderiam ser convidadas. É um avanço em relação à situação anterior, mas se os sócios ou gerentes forem familiares dos impedidos, aí a impossibilidade já não se aplica.

À parte destas situações de falta de transparência ou compadrio, os ajustes directos para determinadas funções ou tarefas específicas são essenciais e legítimos, nomeadamente para lugares de confiança política e até pessoal do titular do cargo e estão aliás previstos na lei. Mas com uma condição: o contrato termina quando o titular do cargo político findar o seu mandato ou sair antecipamente.

Seja qual for a situação, a figura jurídica do ajuste directo tem de existir, pois se as entidades públicas já são lentas em tudo, se tivessem de proceder a concurso público – o único em que existe real concorrência – para todos os contratos, então de lento, o país passava a parado.

Mas muito mais importante que todos estes casos de ajustes directos de atoalhados e similares, são as alterações que se vem publicando à lei da contratação pública, para permitir – com alguma sofisticação legislativa – ajustes directos em contratos de grande dimensão em valor e importância estratégica, nomeadamente empreitadas de obras públicas.

Sobre isso, já escreveram aqui no Observador, entre outros, os Profs. Pedro Gonçalves e Valadares Tavares.

Perante a dificuldade de cumprir o PRR nos prazos convencionados com a UE, o governo tem duas opções. A primeira é cumprir os prazos dos procedimentos concorrenciais tal como estão na lei, que nada impediriam de cumprir os objectivos se a parte pública, não fosse tão lenta – por falta de meios, por falta de motivação, ou ambos – no lançamento dos concursos, na elaboração dos projectos, nos relatórios que tem de produzir e nas decisões que lhe cumpre tomar, demorando para tudo uma eternidade, comparada com a celeridade que é exigida aos particulares e que estes conseguem cumprir. A segunda é o poder político assumir que, com a administração pública que possuímos, não somos capazes de executar o PRR cumprindo as regras da concorrência e, portanto, endossar para os particulares por ajustes directos – de modo assumido ou dissimulado – o trabalho que o Estado deveria fazer, mas de que não é capaz.

Tudo leva a crer que a opção é a segunda. Não se justifica por isso tanto drama e alarme social com a proliferação de ajustes directos. O que não tem remédio, remediado está.