Às vezes é preciso pensar a política – uma actividade que parece ter caído em desuso no calor da luta pela sobrevivência e perante a inconciliabilidade do tempo curto e das regras da comunicação com a conceptualização de valores e ideias.

Há muitas explicações para este estado de coisas. A primeira, é a decadência das fontes do pensamento político e filosófico.

Depois dos grandes ciclos – Iluminismo, Revolução e Contra-Revolução; Capitalismo-Marxismo-Fascismo; Tradicionalismo-Progressismo; Conservadorismo-Liberalismo – e das polémicas confrontações da Guerra Fria entre Comunismo Totalitário e Capitalismo Liberal, entrámos numa espécie de grande centro ou trégua, em que se universalizaram certos conceitos, que, genuína ou oportunisticamente, todos parecem subscrever. Conceitos como “Democracia” e “Direitos Humanos”, que passaram a ser proclamados por todos os regimes e dirigentes, das democracias europeias às oligarquias terceiro-mundistas. São retóricas globais, cartilhas repetidas com mais ou menos convicção, da América à China, de Kinshasa a Berlim.

E não é preciso ir tão longe. Quem leia os programas dos partidos domésticos do chamado “arco constitucional” vê essa mesma amálgama de princípios vagos e simpáticos, agora reforçada pela linguagem dita inclusiva, que invade ou se propõe invadir todos os discursos e documentos.

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Sobre esta insidiosa platitude de ideias e princípios – inodoros, incolores e insípidos, mas não inócuos – distinguem-se duas dissidências que se alimentam reciprocamente. Uma, é a nova direita identitária e popular; a outra é a esquerda globalista, uma esquerda ideológica e cultural mas com expressão política.

Mais que uma dissidência, esta esquerda globalista é uma radicalização abusiva e consequente dos princípios “universais” que todos ou quase todos subescrevem ou “deviam subscrever”. A ela pertencem movimentos como o Woke, a Ideologia de Género e outras correntes a que, com alguma reserva, poderíamos chamar neo-marxistas ou neo-gramscianas. Estas correntes aplicam o materialismo dialéctico e os seus mecanismos de análise, procurando adaptá-los à realidade presente do mundo euro-americano. E a realidade presente exige novos polos de confronto, novos “oprimidos” e muita adaptação: como falar em “proletariado”, em “classe operária”, num mundo onde a indústria praticamente desapareceu? Como clamar por unidade contra “o grande capital”, quando o grande capital se despersonalizou e se tornou, em muitos casos, um aliado objectivo desta mesma esquerda na guerra às identidades familiares e nacionais e a tudo o que atrapalhe a global circulação de capitais, activismos e “causas fracturantes”?

A revisão do sovietismo e do marxismo-leninismo de tipo soviético-estalinista começou com Gramsci, que escreveu parte substancial da sua reflexão crítica no confinamento do fascismo italiano, com tempo de escrita e livros para consulta (coisas que, por ironia da sorte, não lhe teriam sido facultadas na Rússia Soviética dos anos trinta, entre a Tcheka e o Goulag).

A revisão dos socialismos reais e da conceptualização jadnovista que os pretendeu justificar foi também feita na liberdade do mundo capitalista por heterodoxos como Henri Lefebvre e Herbert Marcuse, na linha da Escola de Frankfurt. Depois, o Maoísmo trouxe uma dialéctica de povos, em que as periferias afro-asiáticas se levantariam contra o “centro” euroamericano, onde estaria a própria Rússia, considerada “social-fascista” ou “revisionista”.

À direita, a novidade ideológica dos anos 80 foi a coligação reaganista de conservadores religiosos, falcões anticomunistas e neo-liberais económicos. Uma coligação que funcionou no terreno, num tempo em que as crises e as humilhações da década anterior, do Watergate à presidência de Jimmy Carter, possibilitaram uma radicalidade ideológica de resposta que Reagan corporizou e para a qual conseguiu apoio popular. Mas o reaganismo, que uniu nacionalismo, religião e liberdade económica, foi um momento único na América.

A vitória na Guerra Fria veio depois, paradoxalmente, destruir alguns dos fundamentos da coligação vitoriosa, ao transformar o mundo num grande mercado, para onde se deslocaram as indústrias americanas – dispensando os operários que tinham votado num líder conservador e popular como Reagan. Também, nos últimos anos da Guerra Fria, desaparecido o Grande Timoneiro, a China, sob o nacionalista autoritário e pragmático Deng Xiaoping, começou a usar nichos de capitalismo para tirar o povo da miséria e salvar o regime.

A seguir à Guerra Fria, como a seguir à Grande Guerra e à Segunda Guerra Mundial, multiplicaram-se as utopias. Antes, tinham que ver com o fim da Guerra e a Paz Perpétua; agora, com o fim da História e o advento da Democracia Liberal como modelo único de regime político.

Contudo, logo no princípio deste século, veio o macroterrorismo jihadista e a resposta ao macroterrorismo dos neoconservadores, que trouxe vinte anos de empenhamento frustrado da América em guerras longínquas. E frustrados os projectos globais e amalgamadas as ideologias, as divisões da Humanidade voltaram a fazer-se pela religião, pela nação, pelas raízes, por aquilo que une os homens no meio dos outros homens.

É esta a dialéctica dos novos e nossos tempos: um mundo de Estados que voltam a comportar-se ou a entender-se em função do espaço, da população, dos recursos, numa Geopolítica que, turvadas as bipolarizações ideológicas, volta aos seus eixos de competição, sob o manto de fantasias e utopias que continuam a servir para definir o melhor dos mundos – e a  velha bondade das novas esquerdas.

Assim, os valores e as ideias voltam a estar de pé e em confronto, embora às vezes aqui pareça – e é esse o “mal português” há muitas décadas – que não há confronto e que todos pensam o mesmo ou pensam pouco.

Está a chegar o tempo de ver para além da retórica das boas ideias e melhores palavras e reconhecer as contradições e os conflitos que estão em jogo. E de fazer as escolhas necessárias.