1. Podia ser inconsistente, inconsequente, anódino, irrelevante, um momento efémero, um raspão. Não é. Faz pensar e desde logo porque ali fica, transparente e gelado, o retrato de nós. Nós, os habitantes deste mundo e desta vida que vivemos entrecortadamente, entre o sobressalto, a euforia, a maré baixa, o solavanco. “Amor e Comunicação” está no Teatro Aberto e é um mosaico de situações vividas através de múltiplos sketches de um, dois, cinco minutos no máximo, desbobinados a altíssima velocidade e numa girandola absurda e vertiginosa. Soberbamente interpretado (“chapeau” aos figurinos femininos!) e muito bem “dado a ver” pelo encenador João Lourenço, não deixa tempo nem espaço para respirar mas no fim o que sobra é um travo amargo na boca. Contou-me o encenador que Eduardo Lourenço, após ver a peça, lhe tinha atirado um comentário agudo: “acabo de ver um caleidoscópio de euforia depressiva”.

A peça foi escrita pela inglesa Caryl Churchil, vista na Grã-Bretanha como a mais moderna escritora de teatro da actualidade, apesar de não ter trinta anos – conta mais do dobro -, mas percebe-se a classificação pelo fulgor do seu mergulho nos estranhos códigos que regem hoje a vida dita “quotidiana”. Da inovadora linguagem ao ineditismo do método – quem é aquela gente, somos nós? – ficamos ainda com o difícil legado da decifração.

Assisti a esta peça de teatro há dois ou três domingos no Teatro Aberto de que sou espectadora não tão frequente quanto desejaria, mas mesmo assim dá-me para poder dizer que João Lourenço, o maestro da casa, tem sabido regê-la nas marés altas, mas também nas baixas, com igual critério e qualidade. Há longos anos que acompanho o seu trabalho. Primeiro com o “Grupo 4”, fundado em 1966 e que morava na Praça de Espanha, num teatro erguido ou recuperado pelos próprios até que, em 1982, ocorreu uma dupla mudança: nascia o “Novo Grupo” – sempre com João Lourenço ao leme – mas desta feita abrigado em acolhedor teatro novo e bem perto dali.

Vi nascer o “Grupo 4” , fui aliás a primeira pessoa a reportar o feliz parto: assinei a primeira entrevista que eles deram, para um jornal juvenil. Tínhamos todos acabado de fazer vinte anos e eles eram belos e acreditavam. Fizeram bem. Tantos anos depois, estão igualmente vivos e ainda mais talentosos. O palco é um bom antídoto.

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2. De cada vez é como se fosse a única. Ou a primeira. Uma epifania, um renascer, algo assim de glorioso e quase ficamos confundidos, mesmo que seja a milésima vez que nos sentamos numa plateia diante de um piano. Tem sido assim na Gulbenkian musical e nunca se lhe dará todo o valor porque o facto de termos uma Gulbenkian à “disposição” não é quantificável. Há uma normalidade adquirida na reedição do gesto de lá ir, e a qualidade da casa faz o resto: também já nos habituámos a ela. E no entanto… Poder ouvir, ao vivo e com deleite, Mitsuko Uchida, Radu Lupo, Leonskaja, Kissin, András Schiff, é um consolo d’alma. E se a perfeição não se agradece, reconhece-se ao Serviço de Música da Gulbenkian o “luxo” de critério tão apurado e bom gosto tão refinado. É verdade que há muito aprecio Fundação, que as nossas vidas já se cruzaram tendo tido o privilégio de dela receber a encomenda de dois livros, cada um em sua década, sobre assuntos distintos e remetidos de administrações diferentes. Mas este feliz facto não me veta o aplauso do sopro do génio quando ele se desprende de um palco e cai sobre a plateia onde estou sentada, nem me impede, na penumbra emocionada da sala, o descompasso da perplexidade: como é possível que de cada vez seja “melhor? “

Um critico ou um entendido, certamente discordará: mesmo na excelência há graduações, escolas, talentos desiguais, inspirações diversas, enfim. Sendo porém tudo isso verdade, não é senão a minha modesta condição de amadora que me permite a ousadia de reagir apenas consoante a minha sensibilidade. Mas há uma coisa que sei e reivindico: leiga ou amadora tenho a irrefutável certeza (desde Julho de 2013 nunca mais se pôde dizer irrevogável,) de partilhar com a sala o meu pasmo emudecido e uma secreta gratidão por estarmos vivos e ali, diante de músicos em estado de graça e cintilação. Poder ouvir Radu Lupo a tocar um concerto de Beethoven, e vê-lo, inclinando para trás o corpo cansado, erguer do piano a sua mão esquerda, para acompanhar o maestro na regência da orquestra Gulbenkian, releva do puro milagre mas que ocorria ali de tão intenso senão um milagre? Ver András Schiff, apesar de alguma idade, levantar-se, com uma energia alegre do banco do piano para, por breves instantes, dirigir de pé a sua formação – “Capella Andrea Barca” – e depois voltar a sentar-se diante do teclado, já só transfigurado no intérprete de Dvorak, é partilhar de um fulgor em estado quimicamente puro. Podia continuar. Prefiro dizer que ter ouvido estes músicos foi perceber que eles estavam a falar com Deus. Quem sabe, através de nós, testemunhas, malgré nous, do milagre.

3. Entre nós a Igreja é quase sempre evocada pelas más razões. Ou para se dizer mal dela (os padres não podem casar, os homossexuais não podem adoptar, as mulheres não podem celebrar); ou para dar vazão à fúria decepcionada pelo excesso não fundamentado de “esperanças” incautamente postas nos Papas de que “legislem” a favor do contrário: que os padres casem, que as mulheres sejam ordenadas, etc. É pena. É confrangedor que possa ocorrer a alguém que a Igreja se esgota em duas ou três questões fracturantes, mas a insistência obsessiva com que exclusivamente elas ocupam o espaço mediático quase cobre o resto de um espesso véu. O resto, que afinal é tudo.

Seria porventura surpreendente descobrir quão largo é o perímetro onde age a igreja interventora, a solidária, a actuante, a ouvidora, a parceira. A presente. A que troca a pedra do templo pelas pedras do caminho e vai ter com os outros (e que teria sido – por exemplo – dos subitamente desmunidos face ao peso desta crise, sem a Igreja?), mas também a que ouve, propõe, esclarece e ilumina. Vem isto hoje a propósito de ter “reparado” em três livros recentes, de três sacerdotes de formação e geração muitos distintas entre si, que radiografam limpidamente as multifacetadas realidades a que a Igreja está atenta e com as quais permanentemente interage.

Eis um brevíssimo apontamento sobre eles.

Vitor Feytor Pinto, licenciado em Teologia e mestre em Bioética, dono de verbo inspirado e sólida cultura, com larguíssima experiência pastoral, pároco de uma das mais vivas paróquias de Lisboa, tem um currículo tão vasto -. e suculento! – que pura e simplesmente não cabe aqui. Mas se disser que foi Alto Comissário para o Projecto Vida, membro do Conselho Nacional da Ética para as Ciências da Vida; da Comissão Ética para a Investigação Clínica e director do Sector da Pastoral da Saúde da diocese de Lisboa, estou de imediato a situar a importância da sua acção e intervenção na sociedade, o que internacionalmente levou à sua escolha para consultor do Conselho Pontifício para a Pastoral da Saúde. Alguns dos livros que publicou é destas causas que falam – doença, toxicodependência, sexualidade, ética, dignidade humana -, outros da causa de Deus. Mas agora eis que um jornalista, Octávio Carmo, decidiu contar-nos o “Padre Vitor”, como é chamado na sua paróquia apesar de ser Monsenhor.

Feytor Pinto como viajante da sua própria vida, num percurso através daquilo que a sua memória, passados que foram já oitenta viçosos anos, reteve e agora connosco partilha. Agarrem neste livro: “A Vida é sempre um valor” (Paulinas).

Conheci Américo Aguiar, trinta e poucos anos, quando um dia fui ao Paço Episcopal do Porto em visita ao então “dono da casa”, D. Manuel Clemente. Veloz, vivíssimo, inteligente, arguto, irónico informado, (sim, tudo isto), o padre Aguiar era por esses dias o chefe de gabinete do Bispo do Porto (já o fora do anterior Bispo e continua hoje nas mesmas funções, com o actual) acumulando com diversas outras responsablidades pastorais mas intervindo também no sector da Comunicação, área da sua eleição e estudo (depois de cursar Teologia na Universidade Católica, fez um mestrado em Ciências da Comunicação).

Voltei a vê-lo mais vezes, deliciando-me sempre com o seu tão inteligente e ágil discorrer pelas coisas dos homens e as coisas de Deus. Pois bem, eis agora “Um Padre na aldeia global” (Paulinas) com prefácio do actual Patriarca de Lisboa e em breve, Cardeal (14 de Fevereiro).

O livro, apesar de resultar da sua tese de Mestrado e lhe ter sido sugerido pelo então Bispo do Porto, inspirou-se naquilo que o seu próprio quotidiano lhe “servia” diariamente e que ele uma vez me evocou: “um mestrado a 314 km de casa, num dia-a-dia afogado em SMS’s, emails e telefonemas, com a constatação do fim ou da nossa ocultação do tempo e do espaço, a descoberta dos “nativos digitais”… Tudo que enfim levou quase naturalmente à descoberta do Padre na Aldeia Global, do grande inspirador Marshal MacLuhan. Vivemos num caldo cultural em mudança acelerada pela revolução tecnológica.”

Vivemos. É por isso que é tão interessante olhar a questão pelos olhos “deste” padre, nessa tal aldeia.

António Rego comunica como quem respira: com a mesma naturalidade, a mesma serenidade, a mesma certeza. Açoriano, aos 23 anos já ordenado padre, começou a sua missão na rádio. Seguiram-se cinquenta anos de actividade ininterrupta nas televisões, rádios, imprensa, e até critica de cinema. Diante da plateia do país através da comunicação social, também eu escutei ao longo do tempo a sua palavra avisada e ao mesmo tempo tão próxima; a mais densa e simultaneamente a mais simples; a mais interpelante mas sempre a mais tocante. Por isso me foi tão interessante reencontrar hoje este homem dotado de uma profunda espiritualidade e sempre afável – sobretudo para com os desmunidos e desvalidos habitantes das margens de tudo – através do seu último livro. Um fecundo exercício de reflexão que segue o ritmo litúrgico do calendário anual: para cada passo e cada “momento”, António Rego, deixando fluir a sua inspiração, regista uma meditação, um desabafo, uma interrogação, uma oração, um poema. Chama-se “Eterno Agora – Conversas com o Deus de sempre” (Oficina do Livro), tem prefácio de D. Manuel Clemente e é um consolo d’alma.

Três livros enfim que radiografam – expondo-a a olho nu – a vitalidade, a actualidade e a densidade de alguns protagonistas da igreja portuguesa. Três árvores não fazem, é certo, uma floresta. Mas adubam-na bem.

4. Isto que aqui ficou é um respiro. Da Grécia e do resto. Perdoar-me-ão. Em troca contei-lhes um bocadinho de Portugal sem ser a desdenhá-lo, nem a trucidá-lo.