Brusca e duramente, no fim deste verão, o TC repôs a vigência da ordem constitucional que se preparava para ser (mais uma vez) violada sem que clamores públicos se tenham ouvido por parte dos actores políticos do costume. Falamos da proposta de lei apresentada pelo Governo que, a coberto da transposição de uma directiva sobre o combate à fraude e à contrafacção nos meios de pagamento, tentou introduzir alterações substanciais na lei do cibercrime, permitindo ao Ministério Público e às polícias, sem a prévia intervenção do Juiz de Instrução Criminal (JIC), a apreensão de emails (e de mensagens de natureza semelhante) encontrados no âmbito de pesquisas efectuadas em sistemas informáticos.
O decreto agora declarado inconstitucional, foi aprovado no Parlamento sem votos contra, merecendo o apoio de todos os partidos e deputadas não-inscritas, com excepção do PCP, do CDS-PP e da Iniciativa Liberal, que optaram pela abstenção. Que este diploma tenha sido aprovado sem vozes discordantes mostra bem, como aconteceu recentemente com a Carta dos Direitos Humanos na Era Digital, a importância da existência de checks and balances nos sistemas democráticos. De outro modo, evidencia que nem mesmo um Parlamento onde os juristas pululam pode evitar a produção de leis desconformes à CRP. Felizmente, o Presidente da República interveio no tempo próprio, enviando o decreto para fiscalização preventiva no TC, assim evitando a vigência de normas inconstitucionais que poderiam levar à definitiva lesão de direitos fundamentais e à inutilização de prova nos vários processos penais onde se apreendessem e-mails nos termos propostos pela AR.
Do Acórdão do Palácio Ratton, proferido por unanimidade numa formação reduzida de conselheiros de turno, destacam-se várias críticas contundentes aos trabalhos legislativos. Logo a abrir, a ideia de que a alteração à lei se aplicaria em potência a todos os processos penais em que fosse necessário recolher prova em suporte electrónico (e não apenas no domínio do cibercrime), ou seja, a um número muitíssimo significativo de processos, face à omnipresença das tecnologias digitais na vivência quotidiana. Em segundo lugar, reafirmou energicamente o princípio da reserva do JIC durante a investigação, que aí actua enquanto “juiz das liberdades”, salvaguardando os direitos fundamentais, a liberdade e a segurança dos cidadãos no decurso do processo penal, pilar do sistema penal português. Assim, os ataques aos direitos fundamentais dos cidadãos no processo-crime só são admitidos se, consoante os casos, forem ordenados, autorizados ou realizados exclusivamente pelo JIC. Aqui, como salienta o TC, nem a intervenção posterior do juiz permitia afastar a inconstitucionalidade, porquanto a violação dos direitos fundamentais em causa (inviolabilidade da correspondência e das comunicações, protecção dos dados pessoais e reserva da intimidade da vida privada) não pode ser desfeita, sendo certo que aquilo que o MP viu indevidamente não mais pode deixar de ser visto, mesmo que a informação não vá constar no processo.
Que este decreto tenha sido aprovado na AR naqueles termos, prova que o populismo penal, que grita freneticamente contra o “excesso de garantias” e pelo “reforço da investigação”, não anda já só nas cabeças dos juízes (e presidentes) dos tribunais superiores, sendo confrangedor o silêncio sepulcral da direita das supostas liberdades e a incoerência da esquerda que em regra estrebucha contra o securitarismo e o Estado policial. Que o desfecho tenha sido este serve de lição para todos quantos julgam que no Direito, e principalmente no Processo Penal, os fins justificam os meios. Pegando na deixa dos conselheiros, o ataque aos direitos fundamentais a que os Portugueses assistiram no fim deste verão não mais pode ser desvisto, ainda que – desta vez – tenha sido desfeito.