«Se vires um ‘monhé’ e uma cobra, mata o ‘monhé’ e deixa a cobra”, dizem os meus conterrâneos moçambicanos. Isto não é racismo porque, como já escrevi neste jornal, o racismo deixou de existir. Apenas a psicopandemia que tomou conta da espécie admite o contrário.

Imagine-se uma frágil bola de cristal colocado no topo de uma pirâmide sólida. Se a última se desmoronar, os cacos do cristal nunca mais voltarão a ser a antiga bola, perderão sentido e significado. É o que aconteceu com o racismo. O contexto histórico que o sustentava não existe mais. Desmoronou-se a discriminação racial formalmente instituída nos Estados Unidos da América, o nazismo, a colonização europeia, a guerra fria, o apartheid na África do Sul, entre outros. O racismo estatelou-se e muitos continuam a ter visões de uma bola suspensa no ar, intacta, brilhante, exemplo mais-que-perfeito de uma socio-neurose.

Basta ainda saber que hoje existem milionários de todas as raças e feitios, portanto o substrato socioeconómico do racismo também desapareceu. Além disso, é bem mais fácil um negro ou mestiço do bairro da Jamaica, no Seixal, ou de qualquer outro bairro ver um estado ocidental proteger os seus direitos legais do que um indivíduo branco numa qualquer sociedade da África atual, e por razões bem mais intimidatórias, graves ou violentas. Se alguém acredita que ainda existe muito racismo por resolver é bom que procure fora das sociedades maioritariamente brancas. Terá muito por onde se entreter.

Ver uma sociedade inteira a discutir o racismo a propósito de uma intervenção da polícia, e sobretudo ver gente adulta e responsável propor curas imaginárias para um mal que não existe faz com que a atual sociedade portuguesa não se distinga, na matéria, de um qualquer manicómio. Claro que não me refiro aos que se indignam com o absurdo ou o ridículo da situação. Só falta apelar à intervenção da ONU e da Santa Sé.

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Como se não bastasse, há ainda a ladainha da violência policial. Na utopia de vitimização das minorias oprimidas de matriz soviética que parasitou a civilização ocidental por via das esquerdas, a culpa está sempre naqueles que nunca podem desempenhar o papel de vítimas, pela cor de pele e agravada em certos grupos socioprofissionais, com destaque para os polícias. Estes podem ser desrespeitados, desautorizados, agredidos, humilhados, afetados por frustrações, depressões e suicídios, porém ainda lhes sobra espaço para serem sempre culpabilizados. À falta de melhor acusa-se do uso excessivo da força. Até dá a ideia de que lidam com anjos, não com seres humanos que têm sempre os instintos primários à flor da pele.

As mesmas elites académicas, intelectuais, políticas ou artísticas incapazes de domesticar os instintos primários da espécie, civilizando-a, no conforto das instituições que controlam, em especial nas salas de aula onde, por sinal, fizeram proliferar o pior da anomia social (má educação, indisciplina, preguiça ou mesmo violência), numa espécie de ginástica esquizofrénica exigem que, na hora e em situações de risco, os agentes da polícia cumpram o papel romântico de sublimar os instintos primários da espécie investindo a própria pele no amor incondicional ao próximo. E exigem isso justamente no momento em que os instintos selvagens andam à solta no espaço público e as salas de aula pouco ou nada fizeram para domesticá-los ao longo de anos.

Nas escolas, os progressistas que as controlam (antirracistas e demais variantes) nunca permitiram que se fizessem investimentos sérios para promover valores sociais fundamentais como a ordem, o respeito, a família, a autoridade, as hierarquias institucionais. Pelo contrário, a ideologia educativa instiga a toda a hora o justicialismo, a revolta social, a luta social. Depois, exigem a professores e polícias que sejam cordeiros de ideólogos esquerdistas loucos que, em Portugal, ora tomam conta dos governos, ora condicionam-nos sem hesitações num país onde não existe direita.

Não é por acaso que a geração de imigração problemática não é a primeira, mas a segunda e seguintes, justamente aquelas cuja socialização primária passa ser feita nas escolas ocidentais progressistas. O concelho do Seixal onde vivi e trabalhei por muitos anos é um exemplo. Conheço até relativamente bem o percurso étnico da Quinta da Princesa, na Amora, pois vivi mesmo ao lado. As primeiras vítimas dos ideias de vitimização impostos às minorias identitárias nas nossas escolas de mil e uma maneiras (programas, conteúdos, pedagogias, atividades, teatros, palestras, concursos, etc.) são as suas respetivas famílias, depois os seus bairros, agora caminha-se para a fase seguinte. Não é por acaso que o rap – um tipo de abordagem social que nada tem de nobre ou inteligente – é filho da escolarização da minoria negra. Portanto, a nossas salas de aula tornaram-se atentados às mais elementares ideias de civilização.

A cereja no topo do bolo foi a referência do primeiro-ministro, António Costa, à sua cor de pele passando-se para o lado dos oprimidos. Aconteceu no último debate quinzenal no parlamento. Não há paciência para este nível de indigência cívica, mental ou moral.

António Costa faz parte da pertença racial que os moçambicanos bem conhecem e que designam de forma depreciativa por ‘caneco’. Entre os oriundos do Índico para a antiga colónia portuguesa na África Oriental, monhé sou eu por ter ascendentes islâmicos. Há ainda os ‘baneanes’ hindus cujo espírito de seita sempre os levou a irem buscar a noiva à terra de origem, à Índia, tal como os africanos que preferiam uniões matrimonias no seio da própria etnia e, também por isso, os africanos não os viam como modernizadores.

‘Caneco’ é o termo que, em Moçambique, designa os católicos com origem na antiga Índia Portuguesa, tomados como mestiços num contexto esmagadoramente negro, porém puros na sua origem identitária indiana. Constituindo uma minoria étnico-racial não europeia, contudo no tempo colonial o seu estatuto social colocava-os mais próximos dos então brancos de primeira, ambos distintos dos brancos de classe baixa. Os últimos, por seu lado, estariam mais próximos dos negros moçambicanos no quotidiano, enquanto os primeiros, os ‘canecos’, com maior facilidade se posicionavam nos círculos da elite social e administrativa dos brancos de primeira.

O contexto colonial moçambicano permite compreender como um indivíduo da pertença étnica do primeiro-ministro, António Costa, para mais partilhando também a ascendência branca, com facilidade faça parte das elites portuguesas e, com isso, alcance cargos políticos de primeira importância. Em si, o percurso de António Costa nada explica sobre a abertura racial da esquerda branca portuguesa, bem pelo contrário quando se trata de ‘canecos’, como os moçambicanos sabem.

Não é por acaso que a seguir à independência de Moçambique, enquanto uma parte dos ‘canecos’ se integrou e liderou a Frelimo num caminho de rutura fratricida no interior do grupo dos muito portugueses, uma outra parte teve de vir para Portugal. Aqui se transformou na minoria étnica ou racial que não teve problemas de integração social. Mais, que não teve problemas de integração nas elites portuguesas. De todos as minorias étnicas ou raciais, a mais representada nos cargos políticos, académicos ou empresariais de relevo num país como Portugal é a dos ‘canecos’. Para mim, é mais estranho que sejam de esquerda (caviar) do que da direita da direita, como Narana Coissoró. A razão é simples. Foram ocidentalizados desde o século XVI e, em termos de preparação social, técnica ou académica herdada dos seus antepassados europeizados estavam mais do que preparados para serem brancos de primeira onde quer que vivessem.

Portanto, ver o primeiro-ministro, António Costa, insinuar o que quer que seja de vitimização racial está para lá do absurdo.

De resto, quando realizei um trabalho de campo sobre relações raciais nas cidades de Maputo e Matola, entre os anos de 2010 e 2011, quanto mais descia na hierarquia social negra, quanto mais me afastava da cidade de cimento e dos empregos formais melhor remunerados e, em sentido contrário, quanto mais me aproximava da terra batida, dos bairros de alvenaria precária ou de caniço onde vive a esmagadora maioria da população pobre, mais a representação do branco na sociedade negra moçambicana mudava de sentido. Passava de uma tendência desfavorável entre as atuais elites negras (racista) para uma tendência favorável entre a esmagadora maioria negra desfavorecida.

A última tende a representar o branco de hoje como (muito) diferente do branco do tempo colonial (até 1974-1975) com, entre outros, os argumentos de os brancos e brancas da atualidade casarem com negras e negros, criarem postos de trabalho valorizados (mais não seja empregos domésticos), promoverem pensamentos e práticas valorizados (conhecimentos académicos e de senso comum ligados, por exemplo, ao vestuário, hábitos de vida, maneiras de falar, valores, cumprimento do que se promete, entre outros) e por se distanciarem de comportamentos disruptivos. Os últimos, por seu lado, tornavam-se salientes quando os discursos do senso comum negros incidiam nas suas elites negras sobretudo quando associadas a indianos (em particular monhés), ligação com maior frequência relacionada com práticas como a corrupção e a criminalidade.

No caso da minoria indiana no seu conjunto (monhés, canecos ou baneanes), este segmento revelou-se a que mais se aproxima do rótulo de racista entre os negros suburbanos moçambicanos. Se o primeiro-ministro ‘caneco’, António Costa, e a líder branca do CDS-PP, Assunção Cristas, fossem moçambicanos aos olhos dos negros comuns o primeiro teria um fardo racista mais pesado do que a última. Não continue a fazer-nos de parvos, senhor António Costa.