O Presidente da Républica teve razão nas suas últimas declarações, principalmente se as analisarmos à luz desta nova realidade que enfrentamos hoje: é indiscutível que o Direito e a Lei, nos últimos meses, têm servido a causa política e não o contrário. Aliás, provou-se a fragilidade dos chamados freios e contrapesos (“checks and balances”), que graças a um período de manifesta gravidade, puro e simplesmente desapareceram. Verifica-se uma realidade política que, embora presente no passado, não esperava ver-se repetida em pleno século XXI: o estado de emergência, ou estado de exceção, é acionado como e quando o Governo quer, sem qualquer apuramento democrático.

E mais, decorre neste preciso momento a extinção generalizada dos chamados “muros chineses” que separam os poderes do Estado moderno, aqueles que a República sempre defendeu com unhas e dentes, suor e lágrimas: a separação dos poderes Legislativo, Executivo e Judiciário.

Um regime de democracia parlamentar divide-se tradicionalmente com um corte ao meio entre o poder que governa e aquele que faz oposição. A ideia sempre foi, que dentro das partes que impactam o poder legislativo, a fração menos predominante (ou seja, a oposição – ou minoria), embora afastada do executivo, teria espaço para respirar e fazer uma oposição real, participando no processo de análise, debate e aprovação das várias medidas apresentadas nos parlamentos, com o propósito de englobar as necessidades e preocupações de todas as pessoas, incluindo as minorias, neste processo que nós chamamos a democracia.

Na realidade, estamos hoje bastante distantes deste modelo. Acontece que, desde o começo da pandemia, tanto em Portugal como lá fora, e na grande maioria dos casos, tanto os poderes governantes como os de dita oposição têm estado em plena sintonia em relação às medidas de combate à pandemia. Há quem acredite que de um dia para o outro tornámo-nos todos amigos e que o mundo finalmente entrou em modo relax, enquanto outros cidadãos, mais céticos – os ditos conspiracionistas, têm suspeitado que os nossos políticos andam demasiado amigáveis para o nosso bem.

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Verdade seja dita, já há muito que os eleitorados suspeitavam de um possível conluio entre as elites partidárias: sendo as massas deslavadas mas não cegas, não é difícil para nós fazermos um simples cross-check entre os nomes de antigos governantes, parlamentares e outros políticos de polos alegadamente opostos, e as “guestlists” dos vários conselhos de administração de empresas outrora públicas, “clubes” restritos e outros lugares confortáveis, que representam uma pré-reforma muito atrativa depois de uma vida cansativa de incessível representação de todos os interesses neste país – menos os dos Portugueses.

Em relação ao poder executivo, nunca foi tão fácil gerir um país: Costa manda, assessor envia, jornalista recebe, jornal publica, noticiário apresenta, “especialista” comenta – o povo já não aguenta – e Marcelo, salvador, marceliza. Em todo o processo esqueceram-se da democracia. A Constituição provou-se papel, o “novo normal” é um país à deriva. Inconstitucionalidade? Se é Lei, está tudo bem – “é legitimo, porque eu quero assim”. Os políticos aqui do burgo, que sempre criticaram os nossos parceiros de Leste e as novas direitas do outro lado do Atlântico – por serem demasiado controladores –, estão a organizar autênticos workshops para os futuros Césares que estão para vir. Não tenho dúvidas que os guardiões do templo das democracias musculadas agora são os nossos e que os defensores das liberdades individuais talvez até possam ser os outros tipos. Obviamente, que existem exceções – e graças a Deus – como a Coreia do Norte, que entre executar um traidor e um sintomático não lhes faz lá muita diferença. Mas para quê dar graças? Porque, sem este e outros pontos de referência, nunca iríamos perceber que os poderes executivos das ditas democracias ocidentais estão cada vez mais próximos dos regimes ditatoriais que os nossos representantes sempre criticaram.

Em relação ao último poder, o judiciário, no Observador escreveu-se nestas últimas semanas duras críticas, melhores do que as minhas, aos escândalos das nomeações europeias, aos abusos policiais, à suspensão e censura de juízes e o resto de política de terra queimada contra todos aqueles que não se metem na fila deste matadouro de liberdades orwelliano.

Não sendo nenhum expert, mas do que eu li de História, sei que esta não se repete. Reconheço, no entanto, que certos acontecimentos do passado e o fruto destes, principalmente os que se sucederam a várias crises bem documentadas, ajudam-nos não só a reinterpretar o passado, mas também a perceber o presente e a prever de forma mais ou menos fiável o futuro que nos espera. Assim sendo, o que a História indica é preocupante: nas vezes que o povo perdeu de forma generalizada a confiança na Justiça e na Lei, muito por culpa das ações de governantes endeusados, o poder manifestou-se de forma cada vez mais totalitária e o povo, quando não se encontra totalmente domado pela conjuntura de contracorrente e a força dos “powers that be”, reagiu quase sempre de forma violenta e reacionária. Estamos a ser levados ao limite.

E para terminar, copio o último parágrafo que escrevi num artigo para o Observador há cerca de um ano, que, não estranhamente, manteve-se relevante:

“Discute-se hoje como é que se deve voltar à normalidade. Eu questiono se o normal até agora tem sido benéfico para a sociedade e se esta não é a oportunidade ideal para reconsiderarmos o poder que se dá a quem acha que com ele vale tudo, e que por ele tudo faz.”