Temos estado tão preocupados com a ascensão de novas correntes políticas autoritárias, que nos tem escapado um tipo de pensamento totalitário que teima em desaparecer.

No passado domingo, um jornal português publicou uma entrevista onde uma reputada cientista defende que “a ciência vai descobrir tudo” e que “não há necessidade nenhuma de haver algo que é desconhecido”. São opiniões. Pena que Immanuel Kant, Kurt Gödel e Thomas Kuhn não estejam de acordo.

Geralmente, a ciência é vista como uma atividade nobre e acima de toda a suspeita, mas acho que ganhávamos se tivéssemos uma opinião mais desconfiada sobre o assunto. A bomba atómica, por exemplo, foi desenvolvida por reputados físicos, químicos, matemáticos e engenheiros. E, ainda assim, estas profissões são sempre apresentadas com mais glamour que tantas outras. Por outro lado, nenhum linguista foi jamais condenado por crimes contra a humanidade, não foi um portageiro que inventou a Leucotomia, nem um operador de supermercado que se estabeleceu como o pai do agente laranja. No entanto, estas continuam a ser, lamentavelmente, profissões desconsideradas.

Ora, segundo se defende nesta entrevista, “a ciência vai descobrir tudo” e o desconhecido irá, mais cedo ou mais tarde, terminar. Resta é saber se tal é possível ou desejável, até porque não sei se estou preparado para descobrir por que razão as aves têm pestanas e não sobrancelhas, ou porque raio os pinguins não têm frio nos pés.

Mas, lá no fundo, esta ideia absoluta da ciência só tem um problema: é cientificamente incorreta. O que define o conhecimento científico é o facto de ser provisório. As mesmas ciências exatas que consagraram a física newtoniana foram as que, no séc. XX, com a alvorada da teoria da relatividade e da mecânica quântica, perceberam que as descobertas de Newton, até então indiscutíveis, eram apenas uma aproximação útil em certos contextos.

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Além disso, a ciência tem um problema grave à nascença: o seu autor. As interpretações dos dados e das observações científicas variam de acordo com o paradigma dominante, mas também com os valores éticos e sociais da época. Isso significa que a ciência não é neutra e objetiva em sentido absoluto, e que há sempre uma dimensão de interpretação e de construção cultural. Em abono da verdade, a ciência não progride de maneira linear em direção a uma “verdade final”, mas através de mudanças de paradigma, em que um conjunto de pressupostos científicos é substituído por outro radicalmente diferente.

Outra questão importante é: a ciência vai descobrir tudo, mas através de que meios? E não falo aqui das grandes questões que nos levam a certificar que nem tudo o que é tecnicamente possível, é moralmente aceitável. Falo de coisas mais comezinhas. Por exemplo, a descoberta da penicilina foi bastante agradável, mas o que é aquilo senão um bolor? A vacina contra a varíola é extraordinária, mas estamos cientes que se trata, para todos os efeitos, de pus das vacas? Quando tomamos um probiótico, adormeceríamos descansados se soubéssemos que acabamos de ingerir bactérias? Ainda ontem fui vacinado e estou agradecido pelas conquistas da ciência, mas elas ficam sempre menos épicas quando analisadas deste ponto de vista e tornam-se, por isso, mais úteis.

Bem sei que estudar as ligações entre átomos é diferente de analisar a revolução húngara, mas existe uma dualidade de critérios que deve ser denunciada, sobretudo para quem não suporta injustiças epistemológicas: Quando um cientista fala há sempre um ar de solenidade, como se cada sílaba fosse “palavra da salvação”. Quando um historiador faz um comentário sobre um assunto, “é só uma opinião”. Para já não falar da definição que, durante um almoço de domingo, se dá sempre de uma frase filosófica: “Oh Rúben isso não se entende. Mas não te preocupes. Deve ser filosofia”.

No entanto, este pode ser só um mal-entendido. Possivelmente quando a cientista disse que “a ciência vai descobrir tudo”, disse-o com a mesma entoação com que se diz que “Portugal ainda vai ter o maior PIB do mundo”. Todos sabemos que é mentira. Mas tem a sua graça.