A Constituição consagra (art.º 37.º) o direito à liberdade de expressão do seguinte modo:

  1. Todos têm o direito de exprimir e divulgar livremente o seu pensamento pela palavra, pela imagem ou por qualquer outro meio, bem como o direito de informar, de se informar e de ser informados, sem impedimentos nem discriminações.
  2. O exercício destes direitos não pode ser impedido ou limitado por qualquer tipo ou forma de censura.
  3. As infracções cometidas no exercício destes direitos ficam submetidas aos princípios gerais de direito criminal ou do ilícito de mera ordenação social, sendo a sua apreciação respectivamente da competência dos tribunais judiciais ou de entidade administrativa independente, nos termos da lei.
  4. A todas as pessoas, singulares ou colectivas, é assegurado, em condições de igualdade e eficácia, o direito de resposta e de rectificação, bem como o direito a indemnização pelos danos sofridos.

Este artigo é para ser lido à luz do art.º 18.º, que reza assim:

  1. Os preceitos constitucionais respeitantes aos direitos, liberdades e garantias são directamente aplicáveis e vinculam as entidades públicas e privadas.
  2. A lei só pode restringir os direitos, liberdades e garantias nos casos expressamente previstos na Constituição, devendo as restrições limitar-se ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos.
  3. As leis restritivas de direitos, liberdades e garantias têm de revestir carácter geral e abstracto e não podem ter efeito retroactivo, nem diminuir a extensão e o alcance do conteúdo essencial dos preceitos constitucionais.

Isto deveria ser, no que toca à liberdade de expressão, suficiente. Mas o Parlamento sofre de diarreia crónica. Tanta que o Código Penal, que consagra actualmente (art.º 240.º) o crime de incitamento ao ódio e à violência, já sofreu, desde 1995, 63 (!) alterações, ao sabor de modas de pensamento, maiorias políticas circunstanciais e correcções de asneiras. Uma pessoa um pouquinho desalinhada, assim como eu, se se lembrar de emitir o juízo de que o cantor Marco Paulo, recentemente falecido, nunca cantou nada que valesse a pena ouvir, deverá ter a preocupação de verificar primeiro se não estará já previsto o crime de ofensa ao gosto musical do povo que os parlamentares servem, caso em que este ignoto escriba se veria no transe de ser frito em lume brando pelo MP, e provavelmente ser condenado a fechar a matraca e a um estágio de pelo menos seis meses no Limoeiro, tudo com pena suspensa dada a ausência de condenações anteriores e a pertença à terceira idade.

Este crime não está (fui verificar) previsto. Mas está uma formulação prolixa e vaga onde cabe tudo (não transcrevo porque aquele artigo é extenso), ou quase, que consista no exercício do direito de opinião quando esta ofenda um grupo social que seja reconhecidamente diferente pela sua origem, costumes, religião e mais 170 marcas distintivas, incluindo a “expressão de género”, seja lá isso o que for.

Dá pano para mangas. Tanto que se o MP quiser achar que o bronco do líder parlamentar do Chega quis incitar à prática de assassínios extrajudiciais de imigrantes ou negros; ou que o líder Ventura deseja premiar essas execuções com medalhas: pode propor ao Tribunal uma pena de 6 meses até 5 anos – dois anos e meio, vá, que é para não haver acusação de exagero e por ser a primeira vez.

Nadamos em plena burrice. Porque a crueldade e a violência daquelas declarações (mais outra consignada no X, entretanto apagada, de um deputado ou assessor – não fui repescar porque não tenho apetência para remexer no lixo) não traria votos e, provavelmente, afastaria alguns. Os quais, assim, não apenas recolhem ao redil chegano como é provável que outros se lhes juntem por verem o que está por trás desta cortina justiceira: a oportunidade de ganhar nas secretarias dos tribunais o que foi perdido nas urnas.

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Não podemos razoavelmente esperar que as instâncias judiciais declarem com solenidade: resolvam lá as vossas desinteligências, que diferendos políticos não são da nossa alçada. Porque vemos em países como os EUA, o Reino Unido ou a Alemanha que nuns, à boleia precisamente destas legislações com fundo woke, se decidem em tribunal delitos de opinião e noutros, à boleia de uma completa judicialização dos conflitos, se dirimem em tribunal questões de legitimidade política.

Pacheco Pereira, o conhecido intelectual esquerdista, tem às vezes o mérito de não ser completamente alinhado. E no Princípio da Incerteza defendeu apaixonadamente a liberdade de expressão da opinião nos mais amplos termos, com base na Constituição americana e nas práticas em tal matéria daquele país. Sem porém ir ao ponto a que deveria ter chegado: defender a liberdade de responsáveis do Chega proferirem dislates ofensivos é defender a nossa liberdade de dizermos coisas acertadas. Porque só são isso (acertadas) do nosso ponto de vista, que pode ser ou não o das minorias de hoje, que são as maiorias de amanhã, ou ao contrário.

Vamos ter rodilhices jurídicas completamente inúteis porque constitucionalistas ponderosos virão, com a força dos respectivos galões, dizer que é assim, enquanto outros igualmente cheios de autoridade dirão que é assado. E, se a polémica se instalar, ir-se-ão repescar aquelas inúmeras vezes em que o responsável fulano disse morras a classes de pessoas (do lado do Bloco há disso avonde), para não falar de insultos na praça pública a responsáveis: Passos Coelho, por exemplo, deve estar a fruir a sua imensa fortuna, tantas as vezes que lhe chamaram ladrão.

Costuma tudo aportar com atraso à nossa costa. E às vezes gente ingénua e de rectas intenções julga que, quando a estupidez espante, seremos poupados. Mas não.

Nota editorial: Os pontos de vista expressos pelos autores dos artigos publicados nesta coluna poderão não ser subscritos na íntegra pela totalidade dos membros da Oficina da Liberdade e não refletem necessariamente uma posição da Oficina da Liberdade sobre os temas tratados. Apesar de terem uma maneira comum de ver o Estado, que querem pequeno, e o mundo, que querem livre, os membros da Oficina da Liberdade e os seus autores convidados nem sempre concordam, porém, na melhor forma de lá chegar.