Atravessamos a maior crise nos serviços de urgência (SU), e no SNS em geral, de que há memória.
A razão imediata é a recusa dos médicos em realizarem mais horas extraordinárias nos SU para além das 150 a que estão legalmente obrigados. Mas as razões são bem mais profundas do que isso, e traduzem, de uma forma simplificada, descontentamento (com salários que foram sendo progressivamente reduzidos proporcionalmente ao custo de vida, ano após ano; com condições de trabalho cada vez mais depauperadas; com falta de equipamento e/ou material apropriado; com ausência de boas lideranças; com acréscimo de trabalho administrativo e burocrático; etc.).
Houve um conjunto de sinais que foram sendo transmitidos pelos médicos nestes últimos anos e que os governantes ou não perceberam ou não quiseram perceber e que levaram a este extremo: um conjunto significativo de vagas em concursos que ficaram por preencher; rescisões em quase todas as instituições de saúde, com saída para o sistema privado e/ou para o estrangeiro; artigos de opinião (nomeadamente do atual Diretor Executivo do SNS) com criticas ao sistema e alertas; e, ainda menos subtis, as diversas greves e outras formas de protesto. A estes sinais (que qualquer um veria) só faltou, até agora, a redução do número de candidatos às vagas nos cursos de medicina, mas para lá caminharemos…
A agravar a tudo isto, estamos no pico máximo da curva das reformas anuais dos médicos, por idade, consequência de um número elevado de pessoas formadas nos anos revolucionários, seguidos de um enorme estrangulamento dessas mesmas vagas no início da década de 80.
Em resumo, temos no mesmo momento temporal uma classe profissional do SNS que está descontente, por múltiplos fatores, e, simultaneamente, um número muito elevado de saídas desses profissionais (reforma, privada, estrangeiro).
Portanto, uma situação de uma extrema gravidade e elevado risco. Imperaria a sensibilidade na sua gestão e o bom senso na sua abordagem.
De forma alguma servirá a pressão, ameaça ou qualquer tipo de chantagem para realização das horas extraordinárias necessárias. O “chicote” aqui não funcionará. Desde logo porque os médicos estão a atuar dentro da legalidade.
Também não resultará o apelo piegas à deontologia, porque, para além da Ordem dos Médicos (órgão competente para avaliar do cumprimento do código deontológico da profissão) já se ter manifestado a seu favor, todos os médicos pesaram, seguramente, muito bem a sua conduta, antes de tomarem esta decisão. Estou certo de que é com dor e sofrimento que estão a privar-se de cumprirem a sua vocação.
Nem resultará uma reorganização administrativa das urgências, com rotação de SU abertos para uma ou outra especialidade, tal como foi avançado pelo Ministro da Saúde. Se isso funciona (com custos em termos de acesso!) em algumas especialidades, com menos doentes, e em alguns locais, mais próximos uns dos outros, não funcionará, jamais, em especialidades que atendem dezenas de doentes por dia, como a Pediatria, a Cirurgia Geral ou a Medicina Interna, entre outras. Nem os hospitais recetores (os que ficassem abertos) aguentariam, nem os sistemas de transportes teriam capacidade. Seria um caos, com consequências que se iriam medir em perdas de vidas humanas.
É ridículo qualquer apelo a que os hospitais/SU funcionem em rede, uma vez que é assim que funcionam (pelo menos, é suposto que funcionem) desde sempre.
A criação, “apressada”, de equipas fixas de SU poderá minorar o problema, mas sem o resolver. Conseguirá, eventualmente, ter urgências abertas, mas sem capacidade resolutiva de muitas situações. Porque no modelo desenhado há mais de 20 anos para essas equipas, mesmo nos poucos sítios em que (ainda?!) funcionam, continua a ser necessária a referenciação, após a primeira abordagem realizada pelo “médico urgencista”, para outras especialidades de urgência que darão seguimento ao tratamento, tais como a Cirurgia Geral, a Cardiologia, a Ortopedia, Oftalmologia, etc.
Infelizmente, não restam muitas alternativas. É realmente importante que o Governo contrarie a tendência de descontentamento crescente dos médicos e tente voltar a cativá-los a ficarem no SNS, a fazerem as horas extraordinárias que se imponham como necessárias e a colocarem a sua missão de tratar as pessoas acima de qualquer outro propósito. Só o conseguirá se melhorar a sua carreira (em diversos componentes, muito para além do mero vencimento), as condições em que trabalham e a liderança dos serviços e instituições de saúde do SNS.
Se este Governo não o fizer, e depressa, ficará, inevitavelmente, com o “SNS nos braços”.