A crise do Coronavírus está a reforçar a ideia de que não há futuro no federalismo europeu. Passados quase 70 anos desde a criação da primeira comunidade europeia, está na altura de reconhecer que a ideia federalista falhou e de aproveitar os efeitos positivos da cooperação europeia entre os povos: a consolidação da Democracia e a liberdade económica proporcionada pelo capitalismo.
As instituições da União Europeia (UE) pecam por insuficiente legitimidade para decidir. O Conselho tem legitimidade porque é composto pelos chefes de governo eleitos em cada país e o parlamento porque os seus deputados são eleitos. Mas esta legitimidade é diminuída. No caso do conselho, porque os chefes de governo tomam decisões no âmbito da UE sem para isso terem o mandato das suas populações, como foi a ideia de implementar uma constituição depois disfarçada em Tratado de Lisboa. No caso do parlamento porque os deputados são eleitos por cerca de um terço dos eleitores, uma vez que os restantes ignoram as eleições.
O banco central e a comissão não têm qualquer legitimidade democrática apesar do poder quase ilimitado que possuem em algumas matérias, designadamente na área económica, aquela em que a “construção” europeia mais progrediu desde os anos 1950. O banco central abrange apenas 19 países e transferiu para Frankfurt a gestão da política monetária e a independência que já vigorava nas respectivas capitais com o objectivo de controlar a inflação e impedir o financiamento desregrado dos governos. Nesta área nunca houve preocupação com legitimidade e a sua independência está agora em risco com a necessidade de apoios económicos para combater a crise.
A comissão, por seu lado, é a burocracia que usa e abusa do argumento do funcionamento do “mercado único” para afirmar e alargar o seu poder de gestão sem restrições, implementando legislação e regulamentações que cada vez se imiscuem mais na vida quotidiana dos povos europeus.
Veja-se as limitações impostas ao uso de espécies geneticamente modificadas na agricultura, impedindo-se o desenvolvimento tecnológico e aumentando-se custos ambientais e financeiros para os europeus. Ou a excessiva legislação sobre as empresas tecnológicas, que sob o disfarce da preocupação com a concorrência está na realidade a dificultar o desenvolvimento de empresas europeias e a garantir a perpetuação do domínio norte-americano e chinês. Actualmente, existe o risco acrescido de este poder ilimitado e sem legitimidade da comissão ser estendido à dimensão ambiental., que tal como a económica interfere em quase todas as áreas das nossas vidas.
Este exercício de poder ilegítimo é a fraqueza evidente do projecto federalista que democratas-cristãos e socias-democratas pretenderam implementar na segunda metade do século XX. O problema não é a falta de base legal que a representante da comissão em Lisboa refere aqui, é a falta de um mandato explícito dado pelos povos europeus aos seus governantes.
Mas a crise do Coronavírus está a confirmar que há outra fraqueza evidente no federalismo europeu. Os portugueses gostam da União Europeia porque a vêm como um complemento do estado. Esta ideia torna-se evidente quando se pronunciam sobre o que deve ser feito para resolver a crise do Coronavírus. A lógica é simples: se há um problema o estado deve resolvê-lo, pois muitos portugueses vêm a actuação do estado como o seu contributo para a resolução do problema. Mas o que o estado não resolve, então deve ser a UE a resolver. E à pergunta “o que deve fazer a UE?” a resposta imediata é que deve coordenar os países.
O problema surge quando as pessoas se começam a interrogar sobre quem é que deve coordenar e como é que o deve fazer. E a razão é simples: não é só o facto da burocracia europeia, encabeçada pela comissão, não ter mandato para tal, é também porque não tem nem capacidade nem know-how para o fazer.
A Comissão Europeia (CE) não tem capacidade nem experiência para lidar com as questões mais urgentes relacionadas com o funcionamento das empresas e com o emprego das pessoas. A actuação da CE nesta área apenas cria confusão e duplica o que os estados estão a fazer, com os fundos que os próprios estados transferem para o orçamento comunitário. A CE finge que disponibiliza muitos fundos e os Estados “fingem” que a CE está a coordenar. Mas nada disto faz qualquer sentido.
Há questões como a manutenção das cadeias de valor que requerem coordenação entre países, mas isso vai para além do espaço da UE e como tal necessita de intervenção de outros fora como o G20. Acresce que também aqui a Comissão Europeia não tem conhecimento nem experiência para intervir.
Nas áreas em que a CE poderia intervir, que dizem respeito a questões transfronteiriças por exemplo, já ficou demonstrado que não tem capacidade para tal. Veja-se a questão dos aeroportos e dos voos, e da falta de qualquer controlo sobre a propagação do Coronavírus, ou dos portos e do transporte marítimo.
A prioridade económica na crise do Coronavírus é minimizar as falências e as perdas de emprego, e criar condições para que a recuperação seja o mais rápida possível, especialmente para as pequenas e microempresas e para aqueles que trabalham por conta própria. A CE não traz qualquer valor acrescentado a estas questões porque as realidades em cada país são diferentes. Um simples exemplo demonstra porque é que é a nível nacional que estas questões devem lidadas: Portugal depende muito do turismo e este é o sector mais afectado pela crise, mas o mesmo não se possa na Polónia ou na Suécia, que têm outros sectores como prioritários.
A actuação do Banco Central Europeu poderá ser importante se facilitar aos estados o acesso a dívida a menor custo, mas a sua acção depende dos 19 países mas não da CE. A prazo, quando houver um conhecimento mais exacto dos efeitos produzidos pela pandemia, poderão justificar-se algumas medidas de apoio específicas para as regiões mais afectadas no âmbito dos fundos de coesão, mas por agora este instrumento não tem utilidade uma vez que não serve para respostas imediatas.
A única coisa útil que a comissão pode fazer no combate à crise do Coronavírus é não fingir que faz muitas coisas e não atrapalhar. Deve facilitar o cancelamento das limitações no âmbito do mercado único e da união monetária, e que impedem as ajudas de Estado ou a ultrapassagem de limites ao défice orçamental. Mas de resto não é necessário nem desejável que faça mais.
Os povos europeus não podem estar dependentes da UE para lidar com estas questões, que devem ser abordadas em primeiro lugar a nível nacional, como aliás está a acontecer. Os comissários não têm qualquer legitimidade democrática para tomar decisões em nome dos povos porque é a nível nacional que funciona a Democracia e é para as suas populações que os governos devem prestar contas e ser fiscalizados. É por isso que a tentativa de coordenação de políticas económicas que a CE pretende implementar no âmbito do Semestre Europeu é um abuso na óptica democrática.
Esta ideia de inutilidade da CE no combate ao Coronavírus contraria toda a fé ilusória que os portugueses têm na intervenção da UE para a resolução dos seus problemas. E os povos europeus estão a aperceber-se cada vez mais da inutilidade e da indesejabilidade da intervenção da CE em diferentes assuntos.
Para muitos nos povos europeus e em Portugal, a falta de legitimidade democrática da UE para decidir sobre as nossas vidas é uma questão menosprezada e que pode ser ultrapassada com paz e sossego e com a melhoria do nível de vida das pessoas. Mas as pessoas estão progressivamente a interiorizar que o que tem impacto nas suas vidas não são as instituições centralistas nem os regulamentos burocráticos sem legitimidade que frequentemente ignoram os problemas concretos dos povos.
As comunidades foram criadas nos anos 1950 para atar as mãos à Alemanha no carvão, no aço e na energia atómica. Com elas veio o projecto utópico dos “Estados Unidos da Europa”. Passados quase 70 anos, é altura de assumir que o projecto fracassou.
Falhou a utopia mas não falha a realidade. Os povos europeus devem concentrar-se em aproveitar os dois contributos muito positivos que esta experiência nos legou. A consolidação da Democracia no centro da Europa a seguir à Segunda Guerra Mundial, no Sul nos anos 1980 e no Leste nos anos 2000. E o reforço da liberdade económica e da aproximação dos povos proporcionada pelo capitalismo e disseminada pela Comunidade Económica Europeia e pela Associação Europeia do Comércio Livre. Nada disto tem a ver com federalismo e uma federação de alguns países europeus só iria destruir que até agora se alcançou.
É esta percepção do que a cooperação estreita entre os povos pode trazer para a vida de todos nós – a Democracia e a Liberdade económica – que sustenta a crónica da morte anunciada do federalismo europeu. Só desta forma o legado comum da cultura europeia, originado em Atenas e Jerusalém, não é renegado e pode ser preservado. Para mim, e espero que para muitos outros, estas são as questões essenciais que a conferência que se prepara sobre o futuro da UE deve abordar.
O texto reflecte apenas a opinião do autor