Domingo. Tal como o governo, passei o fim de semana – e as semanas anteriores – a ignorar o anúncio de greve de 600 ou 800 camionistas de “materiais perigosos”. Tal como o governo, julguei que os materiais perigosos se referiam a adeptos da bola, devoluções do último cd de Fernando Tordo ou jihadistas refugiados. Tal como ao governo, não me pareceram produtos cuja falta eu lamentasse excessivamente.
Segunda-feira. Aumentaram de frequência as notícias sobre a greve, que afinal se prende com a distribuição de combustíveis. O governo continuou indiferente. Eu também. O governo porque faz da inépcia um modo de vida. Eu porque, sempre que assino meia dúzia de linhas em prol do automóvel, apanho com a indignação dos fervorosos adeptos das ciclovias, dos veículos eléctricos e sobretudo dos transportes públicos, a acreditar nas televisões o meio favorito de ministros e autarcas – além disso, gozam de descontos e, garantem-me, são imensamente práticos.
Terça-feira. Tomei café numa bomba de gasolina em pleno funcionamento e nem me ocorreu abastecer. A que propósito? As recorrentes reacções ao meu apreço por carros criaram-me a impressão de que apenas uma ínfima minoria dos meus compatriotas apreciaria deslocar-se dessa anacrónica maneira. Seriam, à minha imagem e semelhança, criaturas poluentes e ultrapassadas, paradoxalmente por bicicletas partilhadas, calhambeques híbridos e “metros” de superfície que se movem a 20 km/h. Por isto ou por aquilo, convenci-me de que estas eram as formas de locomoção da população em peso, consciente dos “desafios da mobilidade” e convertida à necessidade ambiental de demorar hora e meia entre Matosinhos e Campanhã.
Quarta-feira de manhã. Acordei com a revelação de que os meus compatriotas são, com todo o respeito, uns hipócritas sem remédio. Tanta lengalenga alusiva aos horrores dos combustíveis fósseis e, à primeira (ou segunda, ou, vá lá, à décima sétima) suspeita de que os combustíveis fósseis podem escassear, lançam-se aos trambolhões nos respectivos postos, a fim de atestar o carrinho, que bom jeitinho lhes dá. Hipócritas e ponderados, já que, para evitar cortes no fornecimento de um produto, não há melhor do que correr aos magotes a adquiri-lo. Tal como o governo, aqui comecei a preocupar-me. O governo, que sempre jurou não ter nada a ver com o problema, passou a tentar resolver o problema, sinal claro de que o problema não se resolveria tão cedo e que, com sorte, arriscava agravar-se. Nos intervalos das “selfies” em velórios e baptizados, o prof. Marcelo disse umas frases no seu estilo próprio, mas, francamente, não prestei atenção e, à excepção do comentador Marques Mendes, duvido que haja no planeta criatura que preste.
Quarta-feira de tarde. Após longa hesitação e moderada preguiça, parti finalmente em busca de gasóleo, mistela que, em Janeiro, o ministro do Ambiente previu abolida em “quatro ou cinco anos”. Aparentemente, queria dizer meses: nos raros postos abertos, a venda limitava-se à gasolina, além de tabaco e vitualhas. Esgotadas as lojas óbvias, atirei-me em busca das obscuras. Com a ajuda do GPS e de indomável coragem, descobri bombas em lugares ermos. Infelizmente, outros descobriram-nas primeiro. A saga ameaçava terminar sem glória quando, em território ausente dos mapas, encontrei um estabelecimento com gasóleo, ou uma promessa do dito. Embora estivesse “no casco” (cito), o funcionário sugeriu que eu esperasse na fila. A fila era de dois carros. Esperei um instante, ou o tempo suficiente para que um sujeito se plantasse junto à minha porta aos gritos: “Não vai meter gasoil! Não vai meter gasoil!” Baixei o vidro e respondi com serenidade: “Hã?” O sujeito repetia: “Não vai meter gasoil!” Olhei em redor à cata de um tradutor e percebi que a fila não era de dois carros: era de uns trinta, e que o condutor de um deles ficara irado face ao desplante com que os ignorei. Presumi que o “casco” e a minha paciência não resistiriam a tamanha procura e arranquei de regresso a casa. Principiei a odisseia com autonomia para 60 km. À chegada, mal dava para 20.
Quarta-feira à noite. Por motivos óbvios, permaneci no remanso do lar, a aprender os meandros da situação. Aprendi, por exemplo, que, avesso a interferir em questões do foro privado, o governo interferira para decretar racionamento e “serviços mínimos”. Aprendi que os mesmos se restringiam a Lisboa e ao Porto, na acertada suposição de que o interior se fornece em Espanha, aliás o que só os maluquinhos não fazem há anos. Aprendi que esta greve em particular é um acto vil, na medida em que não desfruta do aval da CGTP e contesta o progresso com que a esquerda nos abençoou. Aprendi que a autarquia lisboeta disponibilizou bicicletas ao povo, sob o divertido argumento de que “estas têm o depósito cheio”. Aprendi que é infinita a resignação do povo perante a prepotência. Aprendi, com a dona Catarina do BE, que a culpa disto é da “troika”. Aprendi que, em simultâneo aos cérebros que se torce a ver se dão mais, há cérebros que já nascem torcidos. E aprendi que o prof. Marcelo voltou a emitir frases, ainda que com ele a aprendizagem seja ilusória.
Quinta-feira. De manhã, a greve acabou, graças a um governo que não podia fazer fosse o que fosse para que a greve acabasse ou para prevenir os seus efeitos. À hora de almoço, naturalmente, as bombas permaneciam vazias. De tarde havia “gasoil”, a euro e meio o litro. Ajoelhei e agradeci ao dr. Costa.
Sexta-feira. O “spin”, designação “fina” de propaganda, arrancou em grande. Avençados disfarçados de opinadores condenaram a greve. Sociólogos disfarçados de avençados condenaram o “aproveitamento político” da greve. E o DN, uma filial disfarçada de zombie, chamou à “capa” (que não tem), um artigo (que não se lê), assinado por uma “jornalista” (que não se enxerga). A manchete? “O advogado de Maserati que dirige os camionistas”. Por esquecimento, não mencionaram o Fiat Punto do advogado que dirige o DN.
Epílogo. E é assim. A greve mostrou por uns dias o que é habitar a Venezuela. O nosso “espaço público”, da saloiice do poder à subserviência dos “media”, mostra-o constantemente. É ridículo perder tempo a lamentar o buraco a que chegamos se podemos aproveitar para temer o buraco a que haveremos de chegar. De carro ou bicicleta, não vai demorar muito.
Notas de rodapé
1. Na Madeira, o acidente com um autocarro levou o vice-presidente da região a esclarecer, com certo enfado, que o turismo local não seria afectado por aqueles 29 alemães mortos. Claro que não: a população alemã é de largos milhões, pelo que ainda sobraram muitos. E então ingleses, americanos, espanhóis e franceses sobraram todos. Enquanto isso, o presidente madeirense, que não emitiu um pio a propósito, foi dado em parte incerta num vago “estrangeiro”, e depois no Dubai. Fez bem. Por um lado, evitou dizer disparates. Por outro, apesar de lhe imitar a estratégia, não se deixou fotografar em calções como o dr. Costa durante os incêndios. Um estadista que ninguém vê: por mim, trocava já 300 estarolas do “continente” pelo dr. Albuquerque. Quanto aos madeirenses, esses ingratos, suspeito que em Setembro trocarão o dr. Albuquerque por quem calhar.
2. Não sendo sequer remotamente cristão, tive pena do que aconteceu a Notre-Dame. E tive ainda mais pena de que os escombros não tivessem desabado em cima dos que, de uma maneira ou de outra, celebraram a tragédia.
3. Greta Thunberg, a criança sueca que inspirou milhares de crianças a marchar contra o capitalismo de telemóvel em punho, apelou no Parlamento Europeu a que “salvem [quem?] o mundo como salvaram [salvaram?] Notre-Dame”. Presumo que as idades mentais da audiência e da oradora sejam equivalentes. Já os jornalistas que chamam “activista” a Greta são bastante mais jovens.