Mars Desert Research Station, Hanksville, Utah (EUA) — Apesar de alguns desacordos com a direção do campus na gestão do dia a dia, não têm estado incorretos em tudo. Faz agora uma semana que nos avisaram que nalgum momento — geralmente por volta desta altura — começaríamos a sentir o stress do tempo passado na missão e a pressão do tempo que falta e das tarefas por desempenhar. Foi que nem relógio suíço.
Um infortúnio no sistema energético levou a que o Controlo decretasse ontem medidas de preservação de energia durante as primeiras horas da noite. Informaram-nos que devíamos desconectar os rovers elétricos, desligar as estações de carregamento de walkie-talkies e dos fatos de EVA [fatos de exterior para as saídas extraveiculares], desconectar os portáteis, apagar as luzes da estufa e todas as outras luzes supérfluas dentro do habitáculo. Como isto se passou na hora de jantar, a minha katxupa desidratada foi cozinhada e consumida à luz de lanterna. Um sucesso, apesar do sabor pouco apurado (para mim).
Normalmente, participamos todos numa atividade de relaxamento depois de jantar. Mas esta tarde já tinha incluído uma EVA prolongada e cansativa à zona norte, seguida de uma cerimónia de chá e biscotti de alfazema — uma das metodologias de wellness da Kay, a nossa psicoterapeuta de serviço. Por isso, e porque estávamos todos cansados, sonolentos e de barriga cheia, o blackout foi o rastilho que faltava.
O engenheiro tentou passar o tempo numa sessão adicional de prevenção de incêndios. Outros disseram que preferiam no sábado. Eu expliquei que o sábado estava sobrecarregado, a menos que eliminássemos um par de coisas. Os afetados opuseram-se. Propostas de alterações sucederam-se em catadupa, e como uma fila de dominós, uma semana de canseira e exaustão mental resultou num par de trocas contundentes e honestas sobre os objetivos pessoais e profissionais de cada um, o que já tinham alcançado, e o que ainda não, e o que cada um pretende para o tempo que falta.
Também admitimos que parte do problema que subsiste advém dos primeiros dias impostos e desperdiçados, que deixaram perturbações na Matrix. Mas ninguém se foi deitar zangado. Aliás, ninguém estava zangado. No entanto, foi a primeira vez que o se partiu o verniz e se usou uma honestidade bem mais brutal, mais direta, talvez mais confrontativa, o que é mais fácil para uns do que para outros. Por isso se fazem estudos psicossociais sobre o isolamento e as dinâmicas de grupo em estações como esta — como o estudo da Mars 500 ou o estudo que será efetuado numa nova estação análoga que abre este verão, e na qual farei parte da primeira tripulação.
De qualquer forma, admitimos todos a pressão real do tempo decorrido, e decidimos abordar de manhã os temas pendentes, depois de um bom pequeno-almoço. Amanhecemos todos de bom-humor e com soluções ativas. Um bocadinho de conflito nunca fez mal a ninguém.
Mas nem só de dinâmicas interpessoais se faz um astronauta (análogo). As características técnicas e científicas dos indivíduos são igualmente importantes, e no caso da nossa tripulação, temos um portfólio de projetos que tocam em várias áreas das ciências exatas e sociais, na criação artística, e nos espaços liminares e híbridos. Os projetos por vezes coincidem — e tentamos que assim seja —, mas às vezes não. E daí vem a questão das prioridades de cada um, e de como gerir a interação institucional com a liderança do campus, cujas tendências são claramente para as ciências ditas “duras”, de forma retrógada.
Depois há a parte física. No cinema os astronautas andam sempre por locais sem gravidade, o que tem o seu charme. Estamos formatados para esse modelo. Mas se tal seria verdade num transporte espacial de longo-curso, em Marte as forças gravitacionais seriam diferentes, e as necessidades das primeiras missões serão diferentes. As primeiras equipas serão um misto de técnicos e engenheiros de calos nas mãos, trabalhando arduamente no frio e o no pó infindáveis de Marte, para implementar sistemas de suporte de vida. Isto é, um trabalho menos vistoso e quiçá mais comparável com os pioneiros que construíram estradas de montanha quando não havia infraestrutura.
Conto isto porque me ocorreu hoje, durante a EVA que liderei a Candor Chasma — nome homónimo ao canyon no planeta vermelho, e que também figura na Trilogia de Marte — o quão exausto essas quatro horas me deixaram. Entre duas horas de rover por terrenos turbulentos, e duas horas de caminhada pelo canyon, com um fato quente e pesado, o charme da vida de explorador interplanetário esvaiu-se no éter. Sobretudo depois de tropeçar numa pedra marciana e de cair com o abdómen em cima dela. Estou bem… até porque, depois desta EVA, era a minha vez de tomar banho. Dois minutos prazenteiros de sabão de Marselha e água quente, corrente, mas sempre ciente de que o ritmo dos canos anuncia à estação inteira se ultrapassar a minha dose.