De 2 a 15 de janeiro, o Observador vai acompanhar a missão MDRS 238 que simula uma expedição a Marte numa estação “espacial” instalada no deserto do Utah (Estados Unidos). Pedro José-Marcellino, primeiro oficial e documentarista da missão, vai contar-nos diariamente o que se passa: desde o início da viagem, a partir do Canadá, até ao dia em que derem a experiência por completa.
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Mars Desert Research Station, Hanksville, Utah (EUA) — Depois de uma noitada a escrever relatórios finais e várias crónicas para a Mars Society e para o Observador, a minha intenção — garanto — era de ficar na cama até às nove da manhã. Até cancelei as sessões de comunicação por Braided, portanto a costa estava livre. Em vez disso, consegui dormir exatamente 2h55m antes que me acordassem de forma brutal (diria mesmo mais, brutal!).

Primeiro, um alarme de incêndio que, ainda que não me tenha acordado realmente, perturbou o meu sono profundo; logo de seguida, uma série de murraças urgentes na porta, acompanhadas de gritos que me fizeram abandonar os deliciosos sonhos de um hambúrguer na grelha. Só então registei o som estridente e incomodativo do alarme.

“Fire! Fire! Get up!” [Fogo! Fogo! Levantem-se!]

A voz do engenheiro Simon Werner. No escuro, ainda confuso e com o coração na garganta, berrei exasperadamente “Okay, okay!”, sentando me na cama e tentando enfiar as pernas nas calças de pijama o mais rápido possível. Abri a porta à espera de uma rajada de sol dourado no rosto, como todas as manhãs. Mas, qual quê…!? Escuro como breu. Lá fora, a noite marciana continuava em vigor. Eram 6h55 da matina, e o sol não se ergueria por outros 43 minutos.

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Não me pareceu que a minha cara estivesse menos estremunhada, ou o cabelo menos desgrenhado que os dos demais.

Desci rápida, mas cuidadosamente a escada íngreme, apertada, e feita com um material metálico tão acutilante que suspeito ser tão bom a dar tração a botas de inverno nas estações antárticas, como a fazer cortes em pernas alheias. No piso térreo, o HSO Turner já estava a vestir o fato exterior, e a comandante, de walkie-talkie em riste, no canal 19: “Controlo, controlo: isto é um exercício de incêndio da tripulação 238!”

Enquanto me visto, com as calças do pijama a enrolarem-se pela perna acima, a voz da Aga Pokrywka chega pelo canal 22: [tosse fingida] “Socorro, ajudem-me! Acho que há um fogo na redoma científica. Não consigo sair.” Eu e o Turner colocamos o equipamento de combate a incêndios, e saímos a passo acelerado, seguindo as ordens da comandante. Ele carregando um extintor pesadíssimo, e eu um cobertor espesso e os aparelhos de comunicação.

Está frio. O Werner corre atrás de nós, filmando tudo, e rindo-se das nossas tropeçadas sonolentas. Mas este é dos grandes: a porta da redoma está em chamas e o fumo espalha-se pelo túnel à medida que nos aproximamos. O CO2 gelado expelido pelo extintor acorda-me de uma vez.

Fim da missão

O fim da simulação, previsto para sábado, foi antecipado para sexta-feira ao meio-dia — PJ Marcellino

Quando o extintor está vazio, o Werner desliga remotamente os aparelhos de fumo e de chamas artificiais. Abrimos a porta da redoma e encontramos a Aga, sorridente, como cúmplice voluntariosa. São 7h03 da manhã. O Werner diz: “Oito minutos!! Nada mau!” A fim da emergência é comunicado por rádio, e a comandante chama-nos de volta, anunciando o fim do exercício à base.

O Turner, estóico como sempre, faz um comentário qualquer. Na vida de paramédico lida com estas coisas todos os dias. Eu regresso a passo decidido de volta ao habitáculo, definitivamente irritado. Na cozinha, o Werner indica a satisfação com o resultado e diz orgulhosamente que chegámos ao fim do programa de simulações de emergência. “Agora podemos tomar o pequeno-almoço mais cedo!” Respondo que vou voltar para a cama, e ele decide que é boa ideia perguntar-me se tinha lido os e-mails, e se nossa EVA tinha sido aprovada. Antes do café!! Francamente…

Incrédulo, e secamente, digo-lhe: “Achas que estou com cara de quem leu os e-mails a caminho do teu incêndio?” Entro no meu quarto e fecho a porta sem mais, mas ainda a tempo de o ver olhar para os demais às gargalhadas, e chamar-me Morgenmuffel [monstrinho da manhã, em alemão]. Aceito o epíteto. Pergunta idiota.

Quando acordo às nove, como planeado, estou cansado, mas lógico que não estou chateado. Contudo, o meu monstrinho matutino parece ter assustado o alemão, que tenta colmatar a falta gravosa servindo-me café de forma voluntária e perguntando-me se estou bem. Rimo-nos sobre a situação e brindamos ao fim dos exercícios.

Presente de HSO Turner com fotos da NASA

Robert Turner surpreendeu a tripulação com fotografias históricas da NASA — PJ Marcellino

O resto da manhã é um misto de comunicações agendadas via Braided, de limpezas profundas do Turner (dir-se-ia que partilha a obsessão portuguesa), e de escrita dos muitos relatórios de encerramento. O anúncio unilateral de suspensão da nossa simulação ao meio-dia chegara de surpresa na noite anterior, como mais um exemplo das falhas de comunicação graves entre o Controlo Terrestre e a tripulação, e das decisões arbitrárias que frequentemente contestamos, apesar de termos evitado grandes discussões desde o início. Argumentamos que queremos continuar em simulação até ao final do dia, mas não obtemos mais resposta, portanto aceitamos. Acho que estão tão fartos desta tripulação irreverente como nós estamos desta base. Por minha parte, estou piurço: tinha planeado filmar a caminhada final até à arriba a oeste da estação, o que já não é possível, ou pelo menos não de fato vestido.

A boa notícia é que, não estando em simulação, somos livres de sair para apanhar ar fresco e caminhar livremente pelo campus. Ao pôr do sol, a comandante, a Aga, o Simon e eu fazemos uma pequena incursão em linha recta pelo deserto. Passamos meia hora a apagar o efémero labirinto da Dra. Sandor, que tanto orgulho lhe deu. Uma chuvada, e desaparecerá. Estão zero graus e a luz azulada mistura-se com os púrpuras e laranjas no horizonte, e os vermelhões do terreno marciano.

Encontramos um rochedo com ervas, que determino ser um local ideal para instalar a Alice. Regresso à estação e libertamo-la mais calmamente do que da última vez. Suspeitamos que não a veremos mais.

Os mantimentos já eram parcos, e a minha tripulação surpreende-se com o truque soberbo que tiro da manga: um empadão de atum de orgulhar qualquer mãe portuguesa. Pensavam que iam comer bolachas com manteiga desidratada ao jantar, mas dizem-me que foi a melhor refeição da missão (ouviste, mãe?).

Estufa com iluminação cor de rosa

A iluminação rosa da estufa serve de ponto de referência caminhadas noturnas (mas só agora, que a simulação terminou) — PJ Marcellino

Temos uma noite de conversas filosóficas sobre o nosso tempo juntos, que partilharei mais adiante. O Robert Turner tira um trunfo ainda maior da manga: pede-nos que escolhamos um número entre 1 e 5. Dá-nos um pequeno envelope de papel de cera com o número respetivo, e ficamos boquiabertos ao abri-los. Dentro de cada envelope há uma foto em acetato de cinco descolagens de foguetões, acompanhadas de um pedaço de papel dactilografado com o logótipo da NASA, descrevendo o evento. Conta-nos que há 37 anos que esperava pela oportunidade ideal para se desfazer destas preciosidades (originais!) dadas aos jornalistas como referência, mas não que as guardassem. Ele colecionara umas quantas em 1985, quando cobrira estas descolagens para um pequeno jornal local. Um presente tocante.

Às onze, o Simon, a Aga e eu aventuramo-nos de novo pela noite fria do deserto do Utah, para observar as estrelas e brindar a Marte, o pequeno pontinho avermelhado no firmamento. Gratos e melancólicos depois de duas semanas incríveis, deixamo-nos levar pela Lua quase-cheia que ilumina o nosso caminho, e voltamos para trás só quando estamos quase a deixar de ver a luz cor-de-rosa da estufa da Kay.