De 2 a 15 de janeiro, o Observador vai acompanhar a missão MDRS 238 que simula uma expedição a Marte numa estação “espacial” instalada no deserto do Utah (Estados Unidos). Pedro José-Marcellino, primeiro oficial e documentarista da missão, vai contar-nos diariamente o que se passa: desde o início da viagem, a partir do Canadá, até ao dia em que derem a experiência por completa.
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Mars Desert Research Station, Hanksville, Utah (EUA) — Tenho dado
comigo a pensar o quanto a Kay Sandor, aos 74 anos, me lembra a minha avó Maria, que já não anda por esta dimensão há uns aninhos. Lembra me muito dela pela forma de ser e pelo amor às plantas. Põe-lhes a tocar música todos os dias; hoje era música folk húngara, mas ás vezes é clássica, outras é jazz.

Tenho visitado a Kay muitas vezes na estufa — que está com muito melhor aspeto do que quando aqui chegámos — de manhã cedo. Em parte, porque me dá prazer entrar na estufa e sentir o cheiro de verão transmontano que me trás imediatamente memórias olfativas. Mas também para lhe deitar um olhinho, não vá acontecer alguma coisa naquele calor, até porque ela não se entende sempre com os walkie-talkies.

Kay na estufa

Kay Sandor, de 74 anos, é a mais velha nesta missão — PJ Marcellino

Sem me dar conta, penso que comecei a visitar a estufa quase todos os dias, logo depois do pequeno-almoço. Quando por lá passei esta manhã, reparei que o frasco de espirulina da Aga estava quase a transbordar, Aliás, como as outras culturas que ela tem espalhadas pela cozinha. A Kay e eu resolvemos pedir instruções urgentes sobre o que fazer, e a reposta não se fez esperar: “Evacuate greenhab imeditaly… it’s an invasion!” (“Saiam da estufa imediatamente… é uma invasão!”).

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Ao fim destes dias todos, ainda continuamos com bom sentido de humor.

Hoje foi outro dia calmo. Não sei o que se passou dentro do habitáculo enquanto eu filmava as minhas últimas entrevistas, mas quando arrumava o estúdio improvisado, vi três membros da tripulação saírem a passo acelerado para a repetição da EVA mais longa que fizemos, de novo até Candor Chasma, nome famoso da geografia marciana. As fotos com que regressaram são nada mais nada menos do que espetaculares.

Entretanto, a comandante informa-me de que haveria um novo exercício de emergência, desta feita uma rutura do túnel com despressurização acelerada, obrigando à reparação pela equipa de EVA ainda antes de retirarem os capacetes. A ideia é do Werner, claro, e aparentemente só previa que o Turner fosse apanhado de surpresa. Mas quando a comandante sugere que eu devia filmar todo o processo, vêm-me à mente alternativas, e decidimos pregar uma partida ao engenheiro Engenhocas.

Em vez de uma rutura, coloco sete no túnel, e mais uma de dois palmos de diâmetro, mais perigosa, que ameaça fazer colapsar os sistemas de suporte de vida nos túneis.

Quando o Werner e o Turner chegam, reparam a primeira das pequenas
ruturas (alegadamente causadas por um meteorito) e eu comunico à comandante por walkie que continuava a ter mais leituras. A mensagem é rapidamente passada para os oficiais, e as reparações prosseguem túnel abaixo. Quando as declaram todas reparadas, eu indico a urgência de reparar também a maior brecha, que tinha passado despercebida.

O rosto do Simon Werner ilumina-se quando vê as mudanças dinâmicas no exercício. Não o ouço dentro do capacete, mas leio nos lábios dele “echt Geil!” [muito fixe!]. A equipa de salvamento regressa ao habitáculo e é recebida com uma salva de palmas. Eis o problema: ainda falta pelo menos um exercício de incêndio, e suspeitamos que vai ser noturno. Ou seja, a irritação com o Bogdanov, digo, Werner, ainda não passou.

Antes do jantar, a Aga decide finalmente que é chegada a hora de recolher a espirulina dos nossos tubinhos. Umas estão nitidamente mais saudáveis do que outras, o que põe em causa os instintos paternais/maternais de cada um. A da comandante, conhecida por “The Borg”, está verdejante e feliz. A do Simon obtém um segundo lugar muito próximo. Eu saio em quarto (a saída em EVA foi demasiado). As da Kay e da própria Aga morreram mortes dignas.

Comparamos as espirulinas e a galhofa é total. Admitimos que o isolamento e a falta de estímulo para além destas paredes é parcialmente o que nos leva ao hiper-afeiçoamento a um tubo de bactérias e à Alice (o nome da Alice é pronunciado em voz alta). “Até nomes lhes deram”, diz Aga, confirmando a perceção de que, mesmo no espaço, sentiremos solidão e saudades de outras espécies. De forma muito racional, ela já tinha recolhido suficiente espirulina na planta do vaso maior para nos servir numas bolachinhas. Achei muito interessante, e parece que nutritivamente, a coisa funcionou. Quando à minha espirulina, voltou ao vaso principal.

A Alice (ou algum dos seus primos) voltou ao habitáculo, fez a comandante Sionade Robinson gritar, mas foi novamente capturada — PJ Marcellino

Entretanto, a Alice for recapturada com grande fanfarra (e muita gritaria pelo meio). Posso agora passar a minha afeição para a dita, mas amanhã já vai ser libertada na nossa última EVA, a pé. Para já, dorme aqui por casa. Como eu – que hoje fiz a minha primeira sesta por aqui. 90 minutos que me souberam a tudo, a pouco, a nada. Mas mais vale tarde do que nunca.