Mars Desert Research Station, Hanksville, Utah (EUA) — Por todo o mundo, existem talvez uma dúzia de estações análogas permanentes, e várias outras que são parte de projetos temporários, cada uma com objetivos distintos. Por exemplo, na Mars 500, um estudo multinacional conduzido na Rússia há praticamente uma década, testaram-se variações psicológicas e comportamentais da tripulação, que confessou ter tido cinco vezes mais conflitos com o controlo de missão do que entre si. As conversas por walkie-talkie e as falhas de comunicação não são ideais.
Parte do problema reside no paradoxo da personalidade descrito por Suedfeld e Steel. Por um lado, “a maioria dos voluntários para algo tão desafiante e pouco usual como o espaço, os habitats submarinos, e o trabalho polar, registam valores no topo de todas as escalas de busca de aventura, excitação, novidade”, dizem. Por outro, prosseguem, “estes voluntários também tendem a registar valores elevados na necessidade controlo e autonomia pessoais”, algo que contrasta com a vida rotineira, repetitiva, regrada e pouco autónoma de uma estação de investigação científica.
Na Mars-500, o estudo concluiu com a necessidade de criação de laços afetivos entre as duas equipas antes de uma missão. E aqui estamos, portanto, sem tais laços, a fumegar todos os dias devido à arbitrariedade e inconsistência de muitas das ordens que nos são passadas, e cientes de que, numa situação real, em menos de duas semanas estaríamos ao rubro, e prestes a declarar a independência de Marte.
Uma ótima achega que a Cmdte. Robinson partilhou comigo ao pequeno-almoço, indicando precisamente o paradoxo em que nos encontrámos nesta estação no decorrer da última semana.
O estudo de Suedfeld e Steel indica também a necessidade de criação de laços afetivos, conexão e empatia através da manutenção dos contatos possíveis com os nossos entes queridos, e talvez também através da inclusão de outros seres vivos nas viagens interplanetárias de longa-duração — sejam eles pequenos mamíferos, plantas, fungos ou, no caso da nossa artista e cientista Aga Prokywka, bactérias e cianobactérias. Daí que, como ela nos explicava ontem, nos tenhamos (quase) todos afeiçoado de forma surpreendentemente rápida à querida Alice, o ratinho-do-deserto que nos tem visitado… e agora, às cianobactérias. Mas já lá vamos.
Não surpreende, portanto, que a visita do jornalista do The Guardian USA, J. Oliver Conroy, tenha sido tão antecipada. As visitas da imprensa são normalmente planeadas à ordem de uma por missão e articuladas pelas relações públicas da Mars Society. Normalmente, o jornalista seria trazido à estação pela equipa administrativa, mas desta vez não foi assim.
O Oliver chegou a pé, sozinho, tendo estacionado o carro — por motivos que nos ultrapassam — num canyon qualquer a sul da estação, e batido à porta da nossa airlock. Não registámos a presença dele até depois do pequeno-almoço, quando o nosso engenheiro ia a caminho da oficina RAM.
Passaria uma hora até o controlo terrestre nos comunicar que não sabia onde estava a jornalista, porque ainda não o tinha conseguido contactar. Confirmámos que o tínhamos e que estávamos a alimentar bem, até porque para “soylent green” precisamos de matéria prima bem alimentada. Este tipo de humor de Marte/do deserto/de isolamento prosseguiu durante horas, até que decidimos parar com as piadas sobre o último jornalista que tínhamos comido.
Na realidade, estávamos esfomeados por um contacto humano fora do nosso grupo em circuito fechado, e aqui estava uma pessoa interessante e interessada, fazendo perguntas pertinentes sobre cada um de nós, sobre a missão, sobre as nossas motivações pessoais e filosofias — em
linha com o trabalho que também eu estou a fazer — sobre a pesquisa espacial e sobre Marte, sobre os preceitos sociais que as rodeiam… tomando café e comendo a nossa deliciosa comida desidratada, passando umas horas em tertúlia, visitando cada canto da estação como audiência-de-um, cativo mas curioso sobre o funcionamento de cada pedaço. Como rezam as tradições beduínas daquele outro deserto na Terra, recebemo-lo como se fosse um de nós, e despedimo-nos com água para a viagem.
Ainda teve a oportunidade de testar o Oculus Quest 2, o nosso sistema de Realidade Virtual que é parte do estudo que os nossos parceiros da Stardust Technologies estão a realizar, testando e propondo soluções tecnológicas para a saúde mental e o bem-estar dos astronautas em viagens de longo-curso. O visitante teve ainda a sorte de lhe tocar uma das ações de emergência do Simon, que temos andado a temer há uma semana. Começou ontem, e salvámos a Aga durante um resgate em EVA, mas a ventilação do meu fato parou de funcionar devidamente, e em termos de simulação, penso que morri. Mas já me reanimaram, por decisão unânime.
Era já noite de domingo quando decidimos fazer pizza de massa lêveda (viva, portanto) com lactobacilos que — diz a lenda — foram aparentemente encontrados por uma amiga da Aga no fundo de um pote de uma avó finlandesa em 1900-e-troca-o-passo, e desde então passados de geração em geração. Adicionando um molho de tomate e mozzarella desidratados e os poucos vegetais frescos que nos restavam, e voilà: pizza!
Mas também uma conversa sobre os “animais de estimação” da Aga, isto é, as culturas de fermento e bactérias comestíveis espalhadas pela cozinha e pela estufa. Ou seja, o pretexto ideal para ela nos presentear com um tubinho das nossas próprias espirulinas para que delas tomássemos conta durante 72 horas, da forma que entendêssemos.
A espirulina da Aga foi baptizada de ‘Eye’; a da Kay, Zsuzkika; a do Robert, ‘Green Slime’; a do Simon, Silent Green; o Borg é a entidade coletiva da comandante Robinson, que já se refere a si mesma como assimilada; a minha responde a pronomes coletivos e nomes mutáveis: Asimov, Aldos, Orwell, Stanley, Efremov, Steinmüller, Huxley.
Diz-nos a Aga que as comeremos daqui a 72 horas, mas não sei se poderei digerir bactérias de estimação.