Noventa e nove por cento dos organismos que alguma vez marcaram presença no planeta Terra já não existem. Perante este dado estatístico, almas mais sensíveis tenderão a angustiar-se ou, em casos mais agudos, poderão enveredar, ainda que involuntariamente, por ataques de pânico. Outros, mais esclarecidos ou com acesso à world wide web, notarão que, ainda recentemente (em 2015), foram descobertos restos de material biótica em rochas com cerca de 4,1 biliões de anos, e que vivem actualmente na Terra um número aproximado de 1 trilião de espécies. Pondo os factos em perspectiva, uma geração pode assistir à extinção de inúmeras espécies, mas serão precisos milhares de anos para que o derradeiro organismo vivo representante do actual stock de espécies do ano da graça de dois mil e vinte e três decida despedir-se do planeta.
Considera-se que uma espécie está extinta quando o último exemplar conhecido morre sem deixar nenhum herdeiro genético, o que exige que se conheça a existência dessa espécie e a ausência reiterada da mesma. Podemos, ainda, distinguir dois tipos de extinção: 1) a extinção filética ou pseudo-extinção: uma espécie desaparece dando origem a outra mais evoluída (a espécie ancestral considera-se extinta, mas a sua linhagem perdura); 2) a extinção terminal: uma espécie extingue-se sem deixar descendentes, ocorrendo neste caso, e por maioria de razão, uma redução da biodiversidade.
Dos organismos vivos dados como extintos, cada pessoa terá as suas preferências, ou para ser mais correcto, lamentará mais esta ou aquela ausência. No meu caso, assumo um fraquinho pelo dodó: uma espécie de pombo gigante, incapaz de voar, avistado pela primeira vez, segundo a Encyclopædia Britannica, por marinheiros portugueses em 1507. Num notável e premonitório esforço de convivência, em 1681 estava dado como extinto. A causa: predação (humanos e animais introduzidos por estes). O que resta do dodó pode ser avistado no British Museum (o esqueleto de um pé), no museu Zoológico de Copenhaga (o esqueleto da cabeça) e diversas ossadas espalhadas por museus da Europa, dos EUA e da própria ilha Maurícia (terra natal do dodó).
Actualmente, a World Wide Fund for Nature Inc. disponibiliza, na sua página oficial, o top10 dos animais em vias de extinção. Convém elencá-los: o rinoceronte-de-java; o leopardo-de-amur; o tigre de Sunda; o gorila-das-montanhas; o orangotango-de-tapanuli; o focenídeo do rio de Yangtze; o rinoceronte-negro; o elefante-da-floresta; o orangotango-da-sumatra; a tartaruga-de-pente.
Se a minha preferência, no capítulo das ausências, recai sobre o dodó, a minha curiosidade, no capitulo das ameaças, aguça-se em relação a uma espécie que, paulatinamente, e apesar do comportamento errático da sua presença na Terra, tem vindo a desaparecer, constituindo hoje, à data que escrevo, um caso muito sério de encolhimento ou rarefacção: o homo moderatus (ou simplesmente “o moderado”).
De feitio dócil, traço tímido e comportamento estável, o moderado é, sob qualquer perspectiva, um ser estranho. Se o quiséssemos equiparar a outro organismo vivo, escolheríamos o ornitorrinco: para uns, uma espécie de pato; para outros, o esboço de um castor; para todos: uma figura esdrúxula. No contexto da sua acção e do seu habitat natural — o espaço público politizado –, o moderado nunca foi uma espécie querida, ou, para utilizar uma expressão em voga, nunca teve a vida facilitada. Podemos, aliás, considerar como elegíveis ou aplicáveis à vida do moderado as principais causas que ameaçam a generalidade das espécies: factores demográficos e genéticos (entra neste domínio o mecanismo de selecção natural, em que espécies com bom património genético tendem a adaptar-se e a singrar, ao passo que outras definham); a destruição de habitats (por fenómenos naturais ou pela acção humana); a introdução de espécies invasoras; alterações climáticas; caça e tráfico ilegais.
Nas grandes estepes — as redes sociais — a rápida e concertada capacidade de movimentação das espécies invasoras ou geneticamente mais fortes (os radicais) e a flutuante mas crescente horda de ex-moderados (pós transição) que a determinada altura deixaram de conseguir suportar os epítetos “fraco”, “indeciso”, “idiota útil” e o mais erudito “pusilânime”, parece ter contribuído de forma determinante para tornar exíguo o espaço onde o moderado costumava obter nutrição, tratar da prole e descansar nas horas vagas.
O espaço público, tomado como um local simbólico onde as pessoas se envolvem e se ocupam de assuntos comuns de forma livre e sem constrangimentos, aparenta estar hoje confinado a uma arena de confrontos morais de pendor reducionista entre cromos e tipos de traço grosso à la Vilhena: os “bons” e os “maus”; os “democratas” e os “fascistas”; os “remediados” e os “endinheirados”; os “esquerdistas” e os “direitolas”; os “explorados” e os “poderosos”.
O espaço do moderado — um espaço que servia de zona de tampão ao extremismo e ao populismo — tem vindo a minguar por razões que a agitação dos tempos tende a pôr em suspensão. O clamor pelo engajamento de peleja, a adopção de “convicções” implacáveis, elas próprias activadores de dinâmicas “disruptivas”, ou a “inscrição” em “formas de luta” que garantam um combate inclemente contra manifestações de dúvida, cepticismo, indefinição ou pura desistência, são fenómenos cuja dinâmica acompanha os ciclos climáticos que condicionam a presença do moderado e a própria propagação da ideia de moderação.
Sem horror e espanto, o moderado assiste à redução do seu raio de acção e à dilapidação da sua raison d’être (a busca de elementos conciliadores em processos de partilha viva mas civil de pontos de vista antagónicos, sob a regência da boa-fé e a batuta do cepticismo cautelar). Consciente de que tempos de cruzada e correcção tendem a exigir escolhas morais pressurosas e militância em barda, o moderado não perde, contudo, a noção de que a indiferença face às invectivas é um quesito. “Ficar em cima do muro” é anátema, mas a perspectiva que o muro lhe proporciona interessa ao moderado enquanto estágio necessário e compasso virtuoso. Isso requer coragem.
Alturas de crise tendem a colar o moderado ao papel de promotor de impasses, último refúgio de situacionistas pouco interessados na “mudança” (o bezerro de ouro). A confusão é óbvia para prejuízo da espécie. O que torna a natureza do moderado singular, é a propensão não-conformista para um modo de pensamento “político” em detrimento de um modo normativo-ideológico marcado por coletes-de-força mentais e vícios de carácter sectaristas. Ironicamente, esta inclinação, eminentemente contingente e informal, acaba por colocar o moderado no lugar de um “radical livre” em oposição à figura do “radical comprometido”. Na sua essência, o interesse do moderado assenta no exercício da liberdade: de pensar, discutir e debater, num plano marcadamente secular e urbano. É característica da espécie o instinto conversador.
As alegadas virtudes ou qualidades que se colam aos heróis totais — determinação, firmeza, persistência, arrojo — parecem não ser compatíveis com a figura do “homem moderado”, tido como portador de traços medíocres, práticas débeis e posições inconsequentes num mundo que reclama por justiça à vol d’oiseau. Paradoxalmente, essa é a força da moderação e o trunfo do moderado: a coragem da não inscrição, a recusa do cinismo, o primado do argumento contra a ditadura da convicção.
O moderado pode ser uma espécie estranha. Mas nenhum ideal democrático e de justiça poderá sobreviver-lhe. No grande ecossistema das espécies, o mundo poderá valer pelos radicais, mas só dura graças aos moderados (d’après Valéry).
Lisboa, 10 de Março de 2023